domingo, 14 de abril de 2013

Django Unchained e a escravidão nos EUA



Cartaz do filme Django Livre.
Muita violência e vários clichês
como é de praxe nos filmes
de Tarantino.
Nesse ano de 2013, dois filmes concorrentes ao Oscar tratavam do mesmo assunto, a escravidão nos EUA. Tanto Lincoln como Django podem nos levar a debater e refletir sobre o assunto de maneiras diferentes.
Django Livre (ou Django Unchained, no original) tem a marca do diretor Quentin Tarantino. Filme bastante violento, com Jamie Foxx no papel principal, mistura de um western spaghetti com blaxplotation. Com trilha sonora interessantíssima, que modifica o gênero conforme o filme avança, trata da busca do escravo liberto Django por sua esposa, Broomhilda, que é cativa de um senhor. Tudo com muitos tiros, sangue e vingança, guardando semelhança com Bastardos Inglórios, com uma minoria buscando lutar contra os seus opressores.
Mesmo que seja uma grande homenagem de Tarantino a um certo tipo de produção cinematográfica, como é de praxe, Django nos leva a importantes questionamentos sobre a escravidão. Se o filme é violento, cruel e sádico, é porque o tratamento dado aos escravos também o foi. Se o uso da palavra nigger, termo em inglês pejorativo para os negros, é porque os brancos e senhores de escravos tratavam os escravos dessa maneira.
O uso do trabalho escravo foi uma instituição no sul dos EUA desde a época colonial. Já no século XVII, africanos eram transportados para trabalhar nas plantations, ou seja, latifúndios, na região. Pode-se colocar a seguinte comparação: a situação de vida dos negros nos EUA não era muito diferente do Brasil. Trazidos à força da África, tinham péssimas condições de vida. O auge da escravidão foi no fim do século XVIII, o que coincidiu com a independência americana. Curioso perceber que o ideal de "liberdade" da emancipação estado-unidense da Inglaterra servia para alguns, mas não para outros.
Chegando na América, perdiam sua identidade, recebiam nomes europeus dados pelos senhores, como Jack, ou ainda nomes esdrúxulos como Django. Era mais uma maneira de romper com a África, pois seus nomes e sobrenomes se ligavam com famílias e linhagens do seu continente de origem.
Aqui cabe dar destaque a um tipo de relação. O escravo era considerado propriedade do senhor de terras, assim como sua casa e suas fazendas. Por isso que era necessário um recibo de compra e venda para essas pessoa.
Castigos físicos como açoites e marcas de ferro quente eram castigos físicos bastante comuns, como podemos conferir em Django Livre. Outro era a mutilação de membros como dedos e mãos. A grande maioria dos escravos era de homens, assim como no Brasil, o que gerava problemas nas relações internas, mas isso não impossibilitava a formações de casais como Django e Broomhilda.
Ao contrário do Brasil, nos EUA, um número considerável de filhos de escravos nasceram nas senzalas. Por isso que mesmo depois que o tráfico de escravos foi considerado ilegal em 1808, a quantidade de escravos no sul continuava crescendo. Claro que essa legislação de 1808 foi semelhante à lei Eusébio de Queiróz de 1850 no Brasil, que proibia a prática do tráfico de escravos por essas terras, mas que não teve muito efeito prático. Em 1860, por exemplo, ano que em a Guerra de Secessão teve seu início, havia cerca de 3,9 milhões de escravos no sul dos EUA. Lembrando que a ação de Django se passa  em 1858, dois anos antes.
Cicatrizes provocadas por
maus-tratos e açoites em escravo.
Essas marcas deixadas pela
escravidão vão além de cicatrizes
no corpo, afinal até hoje o sul
dos EUA é muito racista.
Por outro lado, a imagem traduz a
violência contra os negros
por cerca de três séculos.
Em certo momento do filme de Tarantino, o personagem de Leonardo di Caprio, o senhor da fazenda, questiona para Django o porquê dos escravos não rebelarem, uma vez que era a imensa maioria. Certamente que houve revoltas, mas ainda que mais numeroso, os escravos perceberam que lutar contra os proprietários teria um efeito, no mínimo duvidoso. Eram os donos das terras e seus donos, que no fim das contas tinham o monopólio da violência apoiados pelas autoridades.
Depois do início do século XVIII, uma das principais formas de resistência era a fuga para estados do norte onde não havia mais escravidão, onde teriam a liberdade, guiados pela Estrela do Norte.
E como era o trabalho? Nas plantations, a principal produção era a de algodão, sobretudo
Escravos trabalhando
em lavoura de algodão nos EUA.
para abastecer a indústria têxtil do norte. As fazendas do Mississipi que aparecem no filme Django mostram exatamente a plantação de algodão. Mas havia outras culturas, como tabaco e milho.
Contudo, não era apenas nas plantações de algodão, tabaco e milho que os escravos africanos labutavam. O trabalho escravo era fundamental no sul. Existiam aqueles que faziam os serviços domésticos e outros serviços na fazenda como o reparo e a construção de obras como celeiro, moinhos. A rigor eram os escravos que faziam quase toda atividade produtiva no sul dos EUA. O trabalho braçal era visto como algo inferior, não seria uma atividade para os bem-nascidos da elite branca sulina.
Para mim, e sei que para muita gente, o personagem mais interessante do filme não é Django; nem o dono da fazenda, Calvin Candie; nem o caçador de recompensas. O personagem mais interessante é o vivido por Samuel L. Jackson, Stephen. Sem estragar o filme para quem não o viu, trata-se de um negro que coopera, trabalhando como braço direito do senhor de terras. Como isso?
Ora, quem eram os feitores das fazendas no Brasil? Quem caçava os escravos fugidos?
Obra de Debret: castigos físico no Brasil a
escravo em pelourinho. Nos EUA, a situação
não era muito diferente.
Certas vezes eram brancos pobres, mas muitas vezes eram os próprios escravos. E não podemos fazer nenhum juízo de valor aqui. Trabalhar para o senhor era uma forma de sobreviver um dia a mais, ou uma forma de resistir. Imagine-se diante de uma situação de extrema opressão. Aderir ao opressor, não é uma estratégia para se garantir? Repito, não façamos juízos de valor sem saber o que é passar por esta ou aquela situação.
E por que colocar um negro para controlar os demais escravos a cuidar da fazenda? Este indivíduo é um mestiço, um mediador. Um sujeito que conhece tanto os códigos dos africanos como dos brancos. Percebeu facilmente que Broomhilda conhecia Django, sabia como se comunicar com ambos. Ao mesmo tempo, sabia se comunicar com Calvin Candie, o seu proprietário.
Apesar das críticas de que Django brinca com uma situação horrível, entendo o filme como uma excelente forma de se abordar a escravidão nos EUA. Temos na obra de Tarantino um interessante retrato da visão que os brancos tinham: a de que possuíam o direito do uso do corpo do outro para o trabalho. E pior: isso parecia algo correto perante a lei.
A escravidão é a mais repugnante forma de trabalho. O uso da mão-de-obra sob serviço compulsório, o uso da violência para com os cativos e a simples ideia que um ser humano era propriedade de outro nos causa aversão. Pena que o espaço aqui é muito pequeno para tratar de um tema tão relevante.
Visto isso, podemos aprender as origens da sociedade racista existente no sul dos EUA. No próximo post, comento Lincoln do Steven Spielberg. Abaixo, o trailer de Django.



Bibliografia:

EISENBERG, Peter. A Guerra Civil Americana. São Paulo, editora brasiliense, 1985.

KARNAL, Leandro; Fernandes, Luiz Estevam; Morais, Marcus Vinicius de; Purdy, Sean. História dos Estados Unidos: das Origens ao Século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.
JUNQUEIRA, Mary A. Estados Unidos – A consolidação da Nação. São Paulo, Editora Contexto, 2001.
BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro: Uma história da escravidão nos EUA, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2006.
 

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