Um
dos assuntos mais em voga na América Latina costuma ser a ditadura argentina.
Só nos últimos tempos, foi notícia a morte de Rafael Videla, ditador do país
entre os anos de 1976 e 1981 e a suposta colaboração do atual papa, Francisco
I, ou Jorge Mario Bergoglio com o regime. E isso não é em vão, pois o regime
foi o mais cruel e sangrento entre os seus semelhantes na América do Sul.
Presume-se cerca de 30 mil mortos entre os anos de 1976 e 1983.
A
História recente argentina é marcada por essa ferida. O século XX argentino,
ainda que tenha sido muito complicado, tem grande semelhança com a História
brasileira. Entre 1945 e 1955, o país foi governado por Juan Domingues Perón,
num sistema muito parecido com o populismo de Vargas. Um Estado forte,
intervencionista e corporativo garantia o apoio das massas para Perón. Com
isso, formou-se uma disputa interna entre peronistas e antiperonistas, estes
defensores do liberalismo econômico, uma espécie de UDN local.
Nesse
contexto, surgiram divisões inclusive entre os peronistas, uns à esquerda e
outros à direita, principalmente nos anos 60 e 70. A esquerda peronista
englobava inclusive grupos armados como o Ejército Revolucionário del Pueblo
(ERP) e o mais importante movimento revolucionário argentino, os montoneros. Segundo tais grupos, o
peronismo seria um caminho para o socialismo. Já na direita estavam defensores
de uma ditadura centralizada, com muita semelhança ao fascismo, lembrando que
Perón abriu os braços argentinos para a vinda de nazistas após a guerra, o que
demonstra, no mínimo grande simpatia para com o regime.
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Perón: do populismo argentino
nos anos 40 e 50 a perseguição
contra a esquerda nos anos 70 |
Em
1973, Perón voltou e venceu as eleições para presidente. Ao mesmo tempo,
distanciou-se dos setores esquerdistas do peronismo, perseguindo-os, o que acendeu a ação dos
grupos como a ERP e os montoneros.
Mas Perón morreu em julho de 1974, deixando o cargo de presidente com sua
esposa, agora viúva, Isabel Perón. Seu governo foi desastroso. Instaurou-se o
caos no país, com um cenário complicadíssimo. A economia estava quebrada; os
grupos armados faziam diversas ações e sofriam forte repressão, principalmente
de uma organização paramilitar surgida dentro do governo o triplo A (Alianza
Anticomunista Argentina) somados com o fraco governo de Isabel Perón
possibilitaram o golpe militar de 24 de março de 1976.
Mas
os militares que tomaram o poder através de uma junta não queriam apenas acabar
com a confusão que estava a Argentina. Queriam extirpar toda a qualquer
oposição, ou melhor, eliminar todos os que não concordassem com seu regime. Na
Junta assumiram o General Jorge Rafael Videla, o Almirante Emilio Massera e o
Brigadeiro Orlando Agosti, chefes das três Forças Armadas, sob o controle do
primeiro.
A
partir daí, houve uma repressão nunca antes vista na Argentina. Foi uma ação de
terrorismo de Estado que consistia em quatro momentos: o sequestro, a tortura, a
prisão e a execução, cada um com características próprias.
O
sequestro era ao mesmo tempo secreto e ostensivo. Secreto, pois eram feitos com
carros não identificados como oficiais. Ostensivo, pois ainda que fossem
geralmente de noite, nas casas das vítimas, tinham a colaboração das
autoridades e eram feitos para que todos ficassem sabendo. Junto a isso, vinha
a pilhagem e o saque dos bens do indivíduo.
Após,
estes eram levados para centros de tortura, onde ocorriam agressões físicas e
psicológicas das mais diversas e imagináveis. O objetivo era além de tirar
informações,
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Videla entregando a Copa do Mundo de 1978
para Passarela, capitão da Seleção Argentina.
A Copa de 78 serviu para legitimar a ditadura
e dar apoio popular para o regime a exemplo
do que ocorreu com o Brasil em 1970 |
degradar a pessoa. Havia cerca de 400 centros de tortura como a
famigerada Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Os que sobreviviam à
tortura, ou podiam ser liberados, ou vistos como elementos “perigosos”.
Esses
perigosos eram levados para a “viagem”, ou seja, para execução. Os corpos
podiam ser jogados nas ruas, como se fosse a represália a alguma ação; enterrados
em valas comuns que a própria vítima cavava antes do fuzilamento, ou jogado no
meio do oceano de um avião.
Ainda
que a pena de morte fosse legal na Argentina, ela não atingiu nenhum preso na
época, a exemplo do Brasil. Por isso que a Ditadura não contabilizou os “mortos”,
mas sim os “desaparecidos”. Foi uma verdadeira chacina. A maioria das 30 mil
mortes ocorreu entre 1976 e 1978. Em geral, eram jovens, entre 15 e 35 anos,
compreendendo guerrilheiros, militantes políticos, sociais, mas também qualquer
um que se opunha ao regime.
Entre
os presos e torturados havia mulheres grávidas que tinham seus filhos na prisão.
Muitos bebes eram raptados, com suas mães mortas, e entregues para outras
famílias, que adotavam-nas ilegalmente, mas sob vista grossa do governo. Até
hoje, na Argentina, muitos jovens descobrem que não são filhos de quem pensam
que são. Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido raptadas de suas mães.
Na
economia, o governo da ditadura buscou derrubar o Estado de Bem-Estar social,
intervencionista, que vigorava desde os anos 30 e que tinha a marca das ações
peronistas. O ministro da economia durante a ditadura, Martínez de Hoz, tinha
em 1976 uma profunda crise na Argentina e via esta intervenção do Estado como a
culpada.
O
governo proibiu os sindicatos, congelou os salários, tentou a estabilização
monetária, privatizou empresas estatais e buscou empréstimo junto a bancos
internacionais como o FMI. Formaram-se grandes oligopólios econômicos que
concentravam boa parte da renda e da produção do país. Claro que a tentativa de
estabilizar a moeda a partir de uma valorização do peso foi totalmente virtual.
O peso acabou sendo desvalorizado, e com as taxas de juros liberadas, a
especulação tornou-se maior que a economia real. Os gastos do governo só
aumentavam e em 1982 a Argentina encontrava-se em profunda crise econômica e
com uma pesada dívida externa.
Claro
que esse cenário contribuiu e muito para crescer a insatisfação com o governo
militar.
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Protesto das Mães da Praça de Maio: a denúncia de crimes
contra os direitos humanos resultou numa pressão contra
a ditadura militar na Argentina |
Junto a isso, havia a pressão de grupos internacionais e nacionais e
denunciavam a violação aos direitos humanos e os diversos crimes da ditadura. Um
exemplo é as Mães da Praça de Maio, composto pelas mães dos desaparecidos, que
lutavam para saber notícias de seus filhos, protestando na Praça de Maio, em
frente à Casa Rosada, sede do governo argentino. Destaca-se também o papel da
Avós da Praça de Maio, que buscavam recuperar os bebês raptados pela ditadura e
entregues à adoção.
No
início de 1982, uma última cartada dos militares para unificar o país ia por
água abaixo: a Guerra das Malvinas conta a Inglaterra pelas ilhas Falkland, que
já abordei aqui: http://historiaeavida.blogspot.com.br/2012/02/guerra-das-ilhas-malvinas-ou-falkland.html. Ao final, a Argentina foi derrotada e massacrada com 700
mortos Mas essa foi o derradeiro crime da ditadura. Em junho de 1982 o general
Gualtieri renunciou e pressionada, a Junta convocou eleições para o fim do ano
de 1983.
O
vitorioso foi Raúl Alfonsín, que buscou restaurar a democracia na Argentina. No
princípio, os argentinos não puniram os crimes do regime militar. Alguns
militares foram punidos ainda nos anos 80, porém essas ações tinham como
consequências levantes dos militares. Mas a partir da década de 90 houve o fim
da impunidade. A partir de brechas encontradas na lei na questão do rapto de
crianças e das pilhagens dos bens dos presos, começou a punição dos
responsáveis. Os últimos anos dos governos do casal Kirchner também
contribuíram bastante para o aparecimento da verdade e o cumprimento da
Justiça.
O
general Videla por exemplo, foi condenado em 1985 à prisão perpétua. Porém, recebeu
do presidente Carlos Ménem um indulto que o liberava. Em 2007, no governo de
Nestor Kirchner foi novamente detido, em prisão domiciliar, para ser levado a
um presídio no ano seguinte.
Mas
quem eram os criminosos na Argentina? Não somente os generais, mas os
torturadores, aqueles que auxiliariam os militares. Talvez o filme “O Segredo
dos Seus Olhos” dê uma boa dica sobre isso. O excelente filme argentino traz
uma discussão sobre o que é a memória argentina sobre o período. Para quem
assistiu a excelente obra (quem não o fez, faça-o), o personagem Goméz,
assassino no enredo colaborou com a ditadura, sendo agente do regime.
Ao
contrário do Brasil, a Argentina puniu seus ditadores e criminosos, como
torturadores durante o período da ditadura. Por aqui a anistia “ampla, geral e
irrestrita” permite que assassinos do período da ditadura andem entre nós. A punição
dos agentes da repressão não se trata de vingança, mas sim de justiça. Eles tinham
todo o aparato do Estado consigo contra grupos de jovens muitas vezes mal
armados e mal preparados. Por isso que o discurso que era uma guerra, com dois
lados que cometeram erros não cola: os crimes da ditadura não têm
justificativa, era um lado muito mais forte que o outro e as medidas tomadas
pelos agentes da repressão foram extremistas. Na verdade é mais que uma questão
de justiça, mas uma questão moral.
Ainda
precisamos buscar muitos dados sobre o período, principalmente por parte dos órgãos
do governo. Os arquivos do exército devem ser abertos para investigação e
pesquisa por aqui. Cabe ainda destacar que no Brasil, como o Estado assumiu as
culpas pelos crimes, está pagando a indenização às vítimas. Logo, o fato de as
famílias dos mortos e presos receberem dinheiro está mais do que correto,
afinal, é a única forma do Estado pagar de alguma forma pelos erros, já que os
criminosos não foram condenados por aqui.
Bibliografia
Romero,
Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Jorge Zahar Editor
Ltda, 2006.