domingo, 21 de abril de 2013

Lincoln e a abolição da escravidão nos EUA



Pôster do filme "Lincoln"

No último post, tratei aqui do filme Django Livre. Agora é a hora de abordar Lincoln.
Lincoln traz uma abordagem bem diferente. Passa-se durante a Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana. Já tratei do assunto aqui (http://historiaeavida.blogspot.com.br/2012/04/os-bons-os-maus-e-guerra-de-secessao.html), mas vou tangenciá-lo mais uma vez, dado a importância da guerra para o tema em discussão nesse post.
Lincoln, do diretor Steven Spielberg, com Daniel Day-Lewis como protagonista, aborda e esforço do presidente norte-americano Abraham Lincoln para a aprovação da abolição da escravidão no Congresso dos Estados Unidos. Trata-se de mais um drama histórico de Spielberg, que já tinha visitado o tema no interessante Amistad. Mesclando fatos históricos com situações pessoais, Lincoln trata do líder norte-americano como um herói na disputa dos direitos dos negros nos EUA.
O presidente Abraham Lincoln em 1863:
dono de um discurso ambíguo sobre os
negros, acabou sendo o presidente responsável
pela abolição da escravidão
Até 1859, Abraham Lincoln não tinha nenhuma quase experiência política e seu partido, o Republicano fora recém-formado. Como esse indivíduo se elegeu presidente então? Da independência ao ano de 1856, os EUA contavam com dois principais partidos, os democratas e os wighs. Os primeiros eram compostos de pequenos comerciantes do norte e pequenos fazendeiros do sul, favoráveis a intervenção do Estado na economia. Os demais, grandes comerciantes do norte e grandes fazendeiros do sul, defensores do liberalismo econômico. Como os democratas venceram várias eleições no século XIX, os wighs acabaram dissolvendo-se em várias cisões partidárias.
Parecia que os democratas controlariam a política do país, mas em 1856 surgem os republicanos com uma plataforma abolicionista. Disputou a eleição de 1860 com Abraham Lincoln contra o democrata Stephen Douglas. Douglas defendia um sul escravista junto de um norte com mão de obra assalariada. Lincoln entendia que a abolição deveria ser para toda nação, porque segundo suas palavras, uma “casa dividida contra si mesmo não pode permanecer”.  O país não aguentaria uma região livre, outra escrava.
Contudo, a posição de Lincoln sobre os negros era bastante dúbia. Ainda que tivesse um discurso antiescravsita, isso não significa que fosse favorável a usar a força contra os estados do Sul para que houvesse a abolição. Ao mesmo tempo, tinha um discurso racista, defendendo os brancos como superiores. Por isso, era visto por muita gente no norte como conservador. Mesmo assim, foi eleito praticamente só com votos dessa região.
O discurso “bonitinho” de Lincoln no filme visando à igualdade não parece combinar com a sua ideia na época. Spielberg comete um pecado em História: o anacronismo, colocar elementos fora de seu tempo. Claro que isso deve entendido como um recurso de cinema, fruto da nossa época e da construção de heróis nacionais. Vivemos no século XXI um importante momento na eterna luta pela igualdade entre os homens. Ao mesmo tempo nos EUA, um presidente negro, o que não é pouco. Creio que o diretor buscou inserir questões da nossa sociedade em Lincoln. Contudo, a ideia mais em voga na época era a do discurso do senador democrata que “o Congresso não pode tornar igual o que Deus fez desigual”.
Em certo momento do filme, Lincoln considera que se vencesse a guerra contra os Confederados, tudo que estes possuíssem seria da União, assim como os escravos. Ou seja, enfatizando a situação do escravo como mercadoria. Já em 1862, Lincoln realizou a Proclamação da Emancipação, que declarava livres os escravos do sul, mas isso não teve solução prática, pois foi obviamente ignorada. Como já falei no blog na postagem acima citada, a razão da Guerra Civil não foi apenas a abolição, mas também formas de administrar o país, como uma maior ou menor abertura ao mercado estrangeiro. Com a Proclamação da Emancipação que o tema dos escravos tornou-se central para o conflito.
Outra medida da Proclamação da Escravidão foi a entrada de ex-escravos no Exército da União. Estima-se que cerca de 280 mil negros fizeram parte das forças armadas nortistas. Claro que os brancos eram privilegiados. A cena em que dois soldados negros é muito
Batalhão da União composto por negros
na Guerra Civil Americana: note como os
seus comandantes são brancos
tocante, mas eles serviam por mais tempo, não chegavam a cargos de oficiais e recebiam um soldo menor.
Mas o filme Lincoln concentra-se principalmente em cima da aprovação da Décima Terceira Emenda Constitucional que acabava com o trabalho escravo nos EUA. Uma curta e necessária explicação: a Constituição americana foi feita em 1787 com dez artigos, ou emendas. As demais foram sendo acrescentadas com o tempo.
A Guerra de Secessão vinha chegando ao fim e o Sul tinha praticamente capitulado. Lincoln via a necessidade de reunificar o país. Como, segundo ele, a escravidão manteria a “casa dividida”, pensava que era hora de terminar com essa prática. Esta foi aprovada sob polêmica e debates em um Congresso formado por senadores do Norte, de Estados que estavam com a União, já que os sulistas formavam os Estados Confederados da América.
A Décima Terceira Emenda foi aprovada em 8 de abril de 1865 pelos senadores. Poucos dias depois, Abraham Lincoln foi baleado pelo sulista John Wilkes Booth e veio a falecer. Os rebeldes capitularam logo em seguida. Junto à Décima Terceira somaram-se a Décima Quarta e a Décima Quinta Ementa buscando uma inserção de ex-escravos na sociedade americana. A Décima Quarta, de 1866, estendia a cidadania para todos aqueles nascidos nos EUA. A Décima Quinta, de 1870, garantia que todos pudessem votar. Todos os homens, diga-se de passagem, porque o sufrágio feminino foi bem posterior.
Finda a guerra, morto Lincoln e abolida a escravidão, o novo presidente, Andrew Johnson tinha a tarefa de reconstruir o país. No sul, muitos ex-escravos se negavam a trabalhar para os antigos senhores. Dessa maneira, estabeleceu-se uma forma de contrato no qual os empregados foram muito prejudicados. Até havia um salário fixo, ou uma porcentagem da sua produção. Mas os trabalhadores contraíram tantas dívidas com os donos das terras, que viviam praticamente numa servidão. Afinal, o comércio e as vendas eram propriedade dos senhores. Os negros saíram do trabalho escravo para serem muito mal remunerados com péssimas condições de trabalho.
Como nos EUA os estados têm autonomia, o presidente Johnson aceitou leis que limitavam a liberdade dos negros, chamadas de “Black Codes” (Códigos
Negros), isso logo depois da abolição, nos anos 1860. Essas leis eram, por exemplo, a proibição do casamento com brancos, de beber álcool, de portar armas, ou até mesmo de possuir terras, como era o caso do Mississipi. Houve outras hostilidades por parte dos estados do sul, como por exemplo, a negação de por em prática a Décima Quinta Emenda.
Para piorar, em 1875 surgiram as leis “Jim Crow”. Eram lei que proíbam os negros de
Leis racistas como as "Jim Crow", proíbiam os negros
de frequentar os mesmo lugares que brancos. Após
o fim da escravidão, o preconceito racial não saiu
das entranhas do sul dos EUA, pelo contrário
frequentar os mesmos lugares que os brancos. Ou seja, restringiam espaços para os negros. A primeira surgiu no Tennesse, para em seguida se espalharem pelo sul do país. Em 1883, a Suprema Corte aprovou a existência dessas leis. A região meridional dos EUA caminhava para um pesado segregacionismo racial. As leis que separavam e discriminavam os negros só foram cair nos anos 50 e 60 do século XX, por pressão da sociedade.
O personagem do excelente ator Tommy Lee Jones tem um interessante papel no filme. Um republicano que se colocava como opositor da abolição, mas que se vê forçado a articular a aprovação da emenda. No final, descobre-se que vivia junto de uma mulher afro-descendente. Na realidade, esta mulher não poderia ser sua escrava, pois no norte não existia mais essa forma de trabalho. Mas, ao mesmo tempo em que era companheira, era sua empregada doméstica, funcionária do lar. Uma forma de alegoria sobre a situação dos negros nos Estados Unidos, que sempre conviveram na sociedade junto dos brancos, mas numa condição diferente e inferior. Foi preciso muita luta para que fosse conseguida a igualdade e, ainda assim, o preconceito racial é uma marca da sociedade estado-unidense.

 
A luta dos movimentos negros nas décadas
de 1950 e 1960 acabaram com as famigeradas
leis racistas nos EUA



Bibliografia:
EISENBERG, Peter. A Guerra Civil Americana. São Paulo, editora brasiliense, 1985.
KARNAL, Leandro; Fernandes, Luiz Estevam; Morais, Marcus Vinicius de; Purdy, Sean. História dos Estados Unidos: das Origens ao Século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.
JUNQUEIRA, Mary A. Estados Unidos – A consolidação da Nação. São Paulo, Editora Contexto, 2001.

VEJA AQUI O TRAILER DO FILME LINCOLN
 

domingo, 14 de abril de 2013

Django Unchained e a escravidão nos EUA



Cartaz do filme Django Livre.
Muita violência e vários clichês
como é de praxe nos filmes
de Tarantino.
Nesse ano de 2013, dois filmes concorrentes ao Oscar tratavam do mesmo assunto, a escravidão nos EUA. Tanto Lincoln como Django podem nos levar a debater e refletir sobre o assunto de maneiras diferentes.
Django Livre (ou Django Unchained, no original) tem a marca do diretor Quentin Tarantino. Filme bastante violento, com Jamie Foxx no papel principal, mistura de um western spaghetti com blaxplotation. Com trilha sonora interessantíssima, que modifica o gênero conforme o filme avança, trata da busca do escravo liberto Django por sua esposa, Broomhilda, que é cativa de um senhor. Tudo com muitos tiros, sangue e vingança, guardando semelhança com Bastardos Inglórios, com uma minoria buscando lutar contra os seus opressores.
Mesmo que seja uma grande homenagem de Tarantino a um certo tipo de produção cinematográfica, como é de praxe, Django nos leva a importantes questionamentos sobre a escravidão. Se o filme é violento, cruel e sádico, é porque o tratamento dado aos escravos também o foi. Se o uso da palavra nigger, termo em inglês pejorativo para os negros, é porque os brancos e senhores de escravos tratavam os escravos dessa maneira.
O uso do trabalho escravo foi uma instituição no sul dos EUA desde a época colonial. Já no século XVII, africanos eram transportados para trabalhar nas plantations, ou seja, latifúndios, na região. Pode-se colocar a seguinte comparação: a situação de vida dos negros nos EUA não era muito diferente do Brasil. Trazidos à força da África, tinham péssimas condições de vida. O auge da escravidão foi no fim do século XVIII, o que coincidiu com a independência americana. Curioso perceber que o ideal de "liberdade" da emancipação estado-unidense da Inglaterra servia para alguns, mas não para outros.
Chegando na América, perdiam sua identidade, recebiam nomes europeus dados pelos senhores, como Jack, ou ainda nomes esdrúxulos como Django. Era mais uma maneira de romper com a África, pois seus nomes e sobrenomes se ligavam com famílias e linhagens do seu continente de origem.
Aqui cabe dar destaque a um tipo de relação. O escravo era considerado propriedade do senhor de terras, assim como sua casa e suas fazendas. Por isso que era necessário um recibo de compra e venda para essas pessoa.
Castigos físicos como açoites e marcas de ferro quente eram castigos físicos bastante comuns, como podemos conferir em Django Livre. Outro era a mutilação de membros como dedos e mãos. A grande maioria dos escravos era de homens, assim como no Brasil, o que gerava problemas nas relações internas, mas isso não impossibilitava a formações de casais como Django e Broomhilda.
Ao contrário do Brasil, nos EUA, um número considerável de filhos de escravos nasceram nas senzalas. Por isso que mesmo depois que o tráfico de escravos foi considerado ilegal em 1808, a quantidade de escravos no sul continuava crescendo. Claro que essa legislação de 1808 foi semelhante à lei Eusébio de Queiróz de 1850 no Brasil, que proibia a prática do tráfico de escravos por essas terras, mas que não teve muito efeito prático. Em 1860, por exemplo, ano que em a Guerra de Secessão teve seu início, havia cerca de 3,9 milhões de escravos no sul dos EUA. Lembrando que a ação de Django se passa  em 1858, dois anos antes.
Cicatrizes provocadas por
maus-tratos e açoites em escravo.
Essas marcas deixadas pela
escravidão vão além de cicatrizes
no corpo, afinal até hoje o sul
dos EUA é muito racista.
Por outro lado, a imagem traduz a
violência contra os negros
por cerca de três séculos.
Em certo momento do filme de Tarantino, o personagem de Leonardo di Caprio, o senhor da fazenda, questiona para Django o porquê dos escravos não rebelarem, uma vez que era a imensa maioria. Certamente que houve revoltas, mas ainda que mais numeroso, os escravos perceberam que lutar contra os proprietários teria um efeito, no mínimo duvidoso. Eram os donos das terras e seus donos, que no fim das contas tinham o monopólio da violência apoiados pelas autoridades.
Depois do início do século XVIII, uma das principais formas de resistência era a fuga para estados do norte onde não havia mais escravidão, onde teriam a liberdade, guiados pela Estrela do Norte.
E como era o trabalho? Nas plantations, a principal produção era a de algodão, sobretudo
Escravos trabalhando
em lavoura de algodão nos EUA.
para abastecer a indústria têxtil do norte. As fazendas do Mississipi que aparecem no filme Django mostram exatamente a plantação de algodão. Mas havia outras culturas, como tabaco e milho.
Contudo, não era apenas nas plantações de algodão, tabaco e milho que os escravos africanos labutavam. O trabalho escravo era fundamental no sul. Existiam aqueles que faziam os serviços domésticos e outros serviços na fazenda como o reparo e a construção de obras como celeiro, moinhos. A rigor eram os escravos que faziam quase toda atividade produtiva no sul dos EUA. O trabalho braçal era visto como algo inferior, não seria uma atividade para os bem-nascidos da elite branca sulina.
Para mim, e sei que para muita gente, o personagem mais interessante do filme não é Django; nem o dono da fazenda, Calvin Candie; nem o caçador de recompensas. O personagem mais interessante é o vivido por Samuel L. Jackson, Stephen. Sem estragar o filme para quem não o viu, trata-se de um negro que coopera, trabalhando como braço direito do senhor de terras. Como isso?
Ora, quem eram os feitores das fazendas no Brasil? Quem caçava os escravos fugidos?
Obra de Debret: castigos físico no Brasil a
escravo em pelourinho. Nos EUA, a situação
não era muito diferente.
Certas vezes eram brancos pobres, mas muitas vezes eram os próprios escravos. E não podemos fazer nenhum juízo de valor aqui. Trabalhar para o senhor era uma forma de sobreviver um dia a mais, ou uma forma de resistir. Imagine-se diante de uma situação de extrema opressão. Aderir ao opressor, não é uma estratégia para se garantir? Repito, não façamos juízos de valor sem saber o que é passar por esta ou aquela situação.
E por que colocar um negro para controlar os demais escravos a cuidar da fazenda? Este indivíduo é um mestiço, um mediador. Um sujeito que conhece tanto os códigos dos africanos como dos brancos. Percebeu facilmente que Broomhilda conhecia Django, sabia como se comunicar com ambos. Ao mesmo tempo, sabia se comunicar com Calvin Candie, o seu proprietário.
Apesar das críticas de que Django brinca com uma situação horrível, entendo o filme como uma excelente forma de se abordar a escravidão nos EUA. Temos na obra de Tarantino um interessante retrato da visão que os brancos tinham: a de que possuíam o direito do uso do corpo do outro para o trabalho. E pior: isso parecia algo correto perante a lei.
A escravidão é a mais repugnante forma de trabalho. O uso da mão-de-obra sob serviço compulsório, o uso da violência para com os cativos e a simples ideia que um ser humano era propriedade de outro nos causa aversão. Pena que o espaço aqui é muito pequeno para tratar de um tema tão relevante.
Visto isso, podemos aprender as origens da sociedade racista existente no sul dos EUA. No próximo post, comento Lincoln do Steven Spielberg. Abaixo, o trailer de Django.



Bibliografia:

EISENBERG, Peter. A Guerra Civil Americana. São Paulo, editora brasiliense, 1985.

KARNAL, Leandro; Fernandes, Luiz Estevam; Morais, Marcus Vinicius de; Purdy, Sean. História dos Estados Unidos: das Origens ao Século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.
JUNQUEIRA, Mary A. Estados Unidos – A consolidação da Nação. São Paulo, Editora Contexto, 2001.
BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro: Uma história da escravidão nos EUA, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2006.