quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

“O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”

Nos últimos dias, tem se discutindo muito a vinda de imigrantes haitianos para o Brasil. Fugindo da miséria de um dos países mais pobres do mundo, eles buscam por aqui um abrigo. Um terremoto em 2010 expôs as mazelas do país, que sofreu por anos com a ditadura da família Duvalier. Poucos sabem, contudo, que o Haiti foi o primeiro país das Américas a abolir a escravidão, em decorrência de uma revolta de escravos.
Localizado no oeste da ilha “La Española”, era colônia francesa desde a primeira metade do século XVII. Sob o nome de Saint-Domingues, na região eram cultivados produtos tropicais, como o açúcar, sob o sistema de plantation, com mão-de-obra escrava e grandes propriedades de terra.
Os escravos, em sua maior parte vindos da África Equatorial, e a chegada destes era enorme. Dadas as condições de vida destes, a mortalidade também era bastante elevada. Os escravos africanos formavam a imensa maioria da população, representando 88% dela em 1789. Havia ainda brancos ricos e pobres, além de mulatos e negros livres, conhecidos como afranchis. Claro que os escravos eram excluídos da sociedade local.
Com a Revolução Francesa em 1789, os brancos de Saint-Domingues foram chamados para participar da assembleia dos Estados Gerais. Aos afranchis, este direito foi negado. Os mulatos e negros livres se rebelaram, mas fracassaram nessa tentativa.
Contudo, em 1791 começou a rebelião escrava liderada por Toussaint-Louverture e a colônia francesa pediu apoio dos afranchis, lhes dando igualdade de direitos junto aos brancos. Era uma revolta dos africanos após muitos anos de exploração e de muitas vítimas da ganância dos europeus.
Toussaint-Louverture
A situação da França piorou com a tentativa de invasão de Saint-Domingues pela Inglaterra. Como se não bastasse, os espanhóis também queriam a parte ocidental da ilha. Os franceses enviaram, em 1792, o girondino Santhonax, com seis mil soldados. Como a situação não tinha retorno, os franceses aboliram a escravidão na sua colônia em 1794 e pediram aos ex-escravos que os auxiliassem na luta contra espanhóis e ingleses.
Sob a liderança de Toussaint-Louverture, os negros aliados dos franceses vencem os espanhóis em 1796 e os ingleses em 1798. O ex-escravo ascende à condição de governador-geral, tomando medidas para recuperar a economia arrasada pelo conflito. Mas, na França, a maré vinha contrária à liberdade dos negros.
Napoleão assumiu o poder em 1799 e pretendia retomar o controle sobre as colônias, principalmente Saint-Domingues. São enviados 60 mil homens para a região.  Toussaint-Louverture é derrubado e preso. A escravidão é restabelecida. Os negros tinham sido traídos. Parece que o ideal de “liberdade, igualdade e fraternidade” valia somente para a Europa.
Mas a rebelião continuava. Dessa vez o líder era o também ex-escravo Jean-Jacques Dessalines. Na revolta morrem 50 mil franceses, até que em primeiro de janeiro de 1804 eles capitulam e Dessalines proclama a república do Haiti. Ele confiscou as terras dos grandes proprietários e os haitianos acabaram eliminando o poder dos brancos, dando início à primeira república controlada por negros na História.
Dessalines

Dessalines foi assassinado em 1806, deixando o país num caos. O Haiti teve uma série de governantes nos anos seguintes, inclusive se dividindo em dois territórios entre 1806 e 1820. As maiores disputas de poder eram entre negros e mulatos, que acabaram se distinguindo em duas classes sociais distintas. Um ditado popular local resume bem isso: “negro rico é mulato, mulato pobre é negro”. Os mulatos se tornaram uma classe social privilegiada.
Ou seja: ainda havia uma elite local. Elite essa que se preocupava com a capital Porto Príncipe e outras regiões urbanas. A massa miserável continuou carecendo de assistência. As medidas de Dessalines não duraram o tempo suficiente e outros governantes como Boyer (1820-1843) adotavam medidas favoráveis aos mulatos. Alguns presidentes com políticas voltadas aos negros também se destacam, mas por menos tempo.
De qualquer maneira, a Revolução Haitiana, como é chamado o processo de independência local assustou grande parte das elites da América espanhola e portuguesa. Surgia o medo de uma revolta escrava de proporções tão grandes. Isso levou os poderosos locais, como na Argentina, México e Brasil, a manter a população pobre a margem dos processos de emancipação. O objetivo era fazer a independência antes que o povo a fizesse.
Nos últimos anos, as ditaduras de “Papa Doc” e “Baby Doc”, da família Duvalier, com o apoio dos EUA, pioraram muito a situação do Haiti. Hoje ele é o país mais pobre da América, necessitando de auxílio contínuo. Mas até que ponto seria interessante às grandes potências auxiliar o Haiti?
Mapa do Haiti, dividindo
a ilha com a República Dominicana

Lamentavelmente a independência do Haiti quase nunca faz parte dos currículos escolares. Parece que é mais importante se reportar a processos que ocorrem na Europa do que numa nação americana composta por negros. O ensino de História tem muitas deficiências ainda. Não abordar a revolução haitiana é apenas uma delas. Ao mesmo tempo, é difícil encontrar bibliografia sobre o assunto no Brasil.
Parece que a música do Caetano Veloso faz cada vez mais sentido: Pense no Haiti, reze pelo Haiti/O Haiti é aqui/O Haiti não é aqui. É de se perguntar, se diante das respostas que alguns brasileiros dão para negar asilo aos haitianos, se o Haiti de 1780 é aqui. Se anos após a abolição da escravidão e após a ditadura militar o Brasil ainda poderia se negar a aceitar refugiados.
Será ainda vivemos no século XIX? Quando a elite fazia de tudo para que o Haiti não fosse aqui? Não o Haiti miserável com profundas desigualdades sociais que conhecemos hoje, mas o Haiti que libertou os escravos e deu um exemplo para a América em 1806. Para alguns, o Haiti de “Papa Doc” é melhor do que o de Dessalines.

Bibliografia:
GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo, editora brasiliense, 1985.
GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. “A crise do sistema colonial e o processo de independência”. In: WASSERMAN, Claudia. (coord.) História da América Latina: Cinco Séculos (temas e problemas). Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1996.

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