domingo, 2 de junho de 2013

Os desaparecidos da Argentina



Um dos assuntos mais em voga na América Latina costuma ser a ditadura argentina. Só nos últimos tempos, foi notícia a morte de Rafael Videla, ditador do país entre os anos de 1976 e 1981 e a suposta colaboração do atual papa, Francisco I, ou Jorge Mario Bergoglio com o regime. E isso não é em vão, pois o regime foi o mais cruel e sangrento entre os seus semelhantes na América do Sul. Presume-se cerca de 30 mil mortos entre os anos de 1976 e 1983.
A História recente argentina é marcada por essa ferida. O século XX argentino, ainda que tenha sido muito complicado, tem grande semelhança com a História brasileira. Entre 1945 e 1955, o país foi governado por Juan Domingues Perón, num sistema muito parecido com o populismo de Vargas. Um Estado forte, intervencionista e corporativo garantia o apoio das massas para Perón. Com isso, formou-se uma disputa interna entre peronistas e antiperonistas, estes defensores do liberalismo econômico, uma espécie de UDN local.
Nesse contexto, surgiram divisões inclusive entre os peronistas, uns à esquerda e outros à direita, principalmente nos anos 60 e 70. A esquerda peronista englobava inclusive grupos armados como o Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP) e o mais importante movimento revolucionário argentino, os montoneros. Segundo tais grupos, o peronismo seria um caminho para o socialismo. Já na direita estavam defensores de uma ditadura centralizada, com muita semelhança ao fascismo, lembrando que Perón abriu os braços argentinos para a vinda de nazistas após a guerra, o que demonstra, no mínimo grande simpatia para com o regime.
Perón: do populismo argentino
nos anos 40 e 50 a perseguição
contra a esquerda nos anos 70
Em 1973, Perón voltou e venceu as eleições para presidente. Ao mesmo tempo, distanciou-se dos setores esquerdistas do peronismo, perseguindo-os, o que acendeu a ação dos grupos como a ERP e os montoneros. Mas Perón morreu em julho de 1974, deixando o cargo de presidente com sua esposa, agora viúva, Isabel Perón. Seu governo foi desastroso. Instaurou-se o caos no país, com um cenário complicadíssimo. A economia estava quebrada; os grupos armados faziam diversas ações e sofriam forte repressão, principalmente de uma organização paramilitar surgida dentro do governo o triplo A (Alianza Anticomunista Argentina) somados com o fraco governo de Isabel Perón possibilitaram o golpe militar de 24 de março de 1976.
Mas os militares que tomaram o poder através de uma junta não queriam apenas acabar com a confusão que estava a Argentina. Queriam extirpar toda a qualquer oposição, ou melhor, eliminar todos os que não concordassem com seu regime. Na Junta assumiram o General Jorge Rafael Videla, o Almirante Emilio Massera e o Brigadeiro Orlando Agosti, chefes das três Forças Armadas, sob o controle do primeiro.
A partir daí, houve uma repressão nunca antes vista na Argentina. Foi uma ação de terrorismo de Estado que consistia em quatro momentos: o sequestro, a tortura, a prisão e a execução, cada um com características próprias.
O sequestro era ao mesmo tempo secreto e ostensivo. Secreto, pois eram feitos com carros não identificados como oficiais. Ostensivo, pois ainda que fossem geralmente de noite, nas casas das vítimas, tinham a colaboração das autoridades e eram feitos para que todos ficassem sabendo. Junto a isso, vinha a pilhagem e o saque dos bens do indivíduo.
Após, estes eram levados para centros de tortura, onde ocorriam agressões físicas e psicológicas das mais diversas e imagináveis. O objetivo era além de tirar informações,
Videla entregando a Copa do Mundo de 1978
para Passarela, capitão da Seleção Argentina.
A Copa de 78 serviu para legitimar a ditadura
e dar apoio popular para o regime a exemplo
do que ocorreu com o Brasil em 1970
degradar a pessoa. Havia cerca de 400 centros de tortura como a famigerada Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Os que sobreviviam à tortura, ou podiam ser liberados, ou vistos como elementos “perigosos”.
Esses perigosos eram levados para a “viagem”, ou seja, para execução. Os corpos podiam ser jogados nas ruas, como se fosse a represália a alguma ação; enterrados em valas comuns que a própria vítima cavava antes do fuzilamento, ou jogado no meio do oceano de um avião.
Ainda que a pena de morte fosse legal na Argentina, ela não atingiu nenhum preso na época, a exemplo do Brasil. Por isso que a Ditadura não contabilizou os “mortos”, mas sim os “desaparecidos”. Foi uma verdadeira chacina. A maioria das 30 mil mortes ocorreu entre 1976 e 1978. Em geral, eram jovens, entre 15 e 35 anos, compreendendo guerrilheiros, militantes políticos, sociais, mas também qualquer um que se opunha ao regime.
Entre os presos e torturados havia mulheres grávidas que tinham seus filhos na prisão. Muitos bebes eram raptados, com suas mães mortas, e entregues para outras famílias, que adotavam-nas ilegalmente, mas sob vista grossa do governo. Até hoje, na Argentina, muitos jovens descobrem que não são filhos de quem pensam que são. Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido raptadas de suas mães.
Na economia, o governo da ditadura buscou derrubar o Estado de Bem-Estar social, intervencionista, que vigorava desde os anos 30 e que tinha a marca das ações peronistas. O ministro da economia durante a ditadura, Martínez de Hoz, tinha em 1976 uma profunda crise na Argentina e via esta intervenção do Estado como a culpada.
O governo proibiu os sindicatos, congelou os salários, tentou a estabilização monetária, privatizou empresas estatais e buscou empréstimo junto a bancos internacionais como o FMI. Formaram-se grandes oligopólios econômicos que concentravam boa parte da renda e da produção do país. Claro que a tentativa de estabilizar a moeda a partir de uma valorização do peso foi totalmente virtual. O peso acabou sendo desvalorizado, e com as taxas de juros liberadas, a especulação tornou-se maior que a economia real. Os gastos do governo só aumentavam e em 1982 a Argentina encontrava-se em profunda crise econômica e com uma pesada dívida externa.
Claro que esse cenário contribuiu e muito para crescer a insatisfação com o governo militar.
Protesto das Mães da Praça de Maio: a denúncia de crimes
contra os direitos humanos resultou numa pressão contra
a ditadura militar na Argentina
Junto a isso, havia a pressão de grupos internacionais e nacionais e denunciavam a violação aos direitos humanos e os diversos crimes da ditadura. Um exemplo é as Mães da Praça de Maio, composto pelas mães dos desaparecidos, que lutavam para saber notícias de seus filhos, protestando na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino. Destaca-se também o papel da Avós da Praça de Maio, que buscavam recuperar os bebês raptados pela ditadura e entregues à adoção.
No início de 1982, uma última cartada dos militares para unificar o país ia por água abaixo: a Guerra das Malvinas conta a Inglaterra pelas ilhas Falkland, que já abordei aqui: http://historiaeavida.blogspot.com.br/2012/02/guerra-das-ilhas-malvinas-ou-falkland.html. Ao final, a Argentina foi derrotada e massacrada com 700 mortos Mas essa foi o derradeiro crime da ditadura. Em junho de 1982 o general Gualtieri renunciou e pressionada, a Junta convocou eleições para o fim do ano de 1983.
O vitorioso foi Raúl Alfonsín, que buscou restaurar a democracia na Argentina. No princípio, os argentinos não puniram os crimes do regime militar. Alguns militares foram punidos ainda nos anos 80, porém essas ações tinham como consequências levantes dos militares. Mas a partir da década de 90 houve o fim da impunidade. A partir de brechas encontradas na lei na questão do rapto de crianças e das pilhagens dos bens dos presos, começou a punição dos responsáveis. Os últimos anos dos governos do casal Kirchner também contribuíram bastante para o aparecimento da verdade e o cumprimento da Justiça.
O general Videla por exemplo, foi condenado em 1985 à prisão perpétua. Porém, recebeu do presidente Carlos Ménem um indulto que o liberava. Em 2007, no governo de Nestor Kirchner foi novamente detido, em prisão domiciliar, para ser levado a um presídio no ano seguinte.
Mas quem eram os criminosos na Argentina? Não somente os generais, mas os torturadores, aqueles que auxiliariam os militares. Talvez o filme “O Segredo dos Seus Olhos” dê uma boa dica sobre isso. O excelente filme argentino traz uma discussão sobre o que é a memória argentina sobre o período. Para quem assistiu a excelente obra (quem não o fez, faça-o), o personagem Goméz, assassino no enredo colaborou com a ditadura, sendo agente do regime.
Ao contrário do Brasil, a Argentina puniu seus ditadores e criminosos, como torturadores durante o período da ditadura. Por aqui a anistia “ampla, geral e irrestrita” permite que assassinos do período da ditadura andem entre nós. A punição dos agentes da repressão não se trata de vingança, mas sim de justiça. Eles tinham todo o aparato do Estado consigo contra grupos de jovens muitas vezes mal armados e mal preparados. Por isso que o discurso que era uma guerra, com dois lados que cometeram erros não cola: os crimes da ditadura não têm justificativa, era um lado muito mais forte que o outro e as medidas tomadas pelos agentes da repressão foram extremistas. Na verdade é mais que uma questão de justiça, mas uma questão moral.
Ainda precisamos buscar muitos dados sobre o período, principalmente por parte dos órgãos do governo. Os arquivos do exército devem ser abertos para investigação e pesquisa por aqui. Cabe ainda destacar que no Brasil, como o Estado assumiu as culpas pelos crimes, está pagando a indenização às vítimas. Logo, o fato de as famílias dos mortos e presos receberem dinheiro está mais do que correto, afinal, é a única forma do Estado pagar de alguma forma pelos erros, já que os criminosos não foram condenados por aqui.

Bibliografia
Romero, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Jorge Zahar Editor Ltda, 2006.

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