quarta-feira, 25 de abril de 2012

Os “bons”, os “maus” e a Guerra de Secessão


Cartaz do filme
"Três homens em conflito"
A Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana gerou vários filmes e livros. Um dos meus preferidos é “Três Homens em Conflito” (The good, the bad and the ugly, em inglês; ou “O bom, o mau e o feio, em livre tradução – o título original é em italiano: Il buono, il brutto, Il cattivo), que usa a guerra como pano de fundo. O filme do ano de 1966, dirigido por Sergio Leone com Clint Eastwood é excelente. Homenagem ao “western spaghetti”, traz o sangue e sujeira dos protagonistas na medida exata do que procura retratar.
A Guerra Civil nos teve várias causas. A imediata coube à pretensão da União de abolir a escravidão. Enquanto em 1861 o sul ainda era escravista, o norte dos EUA deixou de sê-lo na virada do século XVIII para o XIX. Mas para entender o porquê disso é preciso entender a estrutura dos estados do sul e no norte desse país.
Escravos trabalhando
numa plantação no sul
dos EUA
A economia sulista era basicamente agrária, voltada para o cultivo do tabaco, do algodão, mas também de gêneros alimentícios como o milho. Com grandes propriedades de terra e mão de obra escrava oriunda da África, o sul dos EUA era muito semelhante ao Brasil. Já o norte era dominado por uma burguesia industrial e nessa região já vigorava a mão de obra assalariada.
Dessa maneira, as contradições eram imensas: o sul, representado por estados como a Georgia, Louisiana e Texas; tinha interesses muito diversos do norte. Para além da escravidão havia outros problemas como a discussão do futuro das terras do oeste americano, que estavam sendo desbravadas e ainda eram um tanto desconhecidas. É nesse cenário que se desenrola “Três Homens em Conflito”. A elite sulista pleiteava que fossem terras baratas, para que pudessem ser compradas pelos grandes proprietários. Já a elite do norte queria que fossem caras, pois os capitalistas temiam que seus operários debandassem para o oeste.
No mapa acima, estados sulistas (escravistas) em rosa e nortistas (abolicionistas) em azul no ano
de 1861, quando começa a Guerra de Secessão

Outra questão relevante era a dos impostos sobre as importações: enquanto os sulistas pretendiam que fossem baixos, para que conseguissem adquirir produtos industrializados com maior facilidade, os nortistas exigiam que fossem elevados para evitar concorrência com seus produtos.
Abraham Lincoln
Em 1860 Abraham Lincoln foi eleito presidente dos Estados Unidos com a plataforma de abolir a escravidão. Descontentes com essa situação, os sulistas tentaram a separação, ou a secessão. Sob o nome de Estados Confederados da América, estes projetavam uma nação independente, o que foi rechaçado e impedido pelo norte, que pretendia manter a União. Assim, o norte invadiu o sul, para que não houvesse separação.
A Guerra durou longos quatro anos e consumiu a vida de cerca de 618 mil pessoas. A tragédia dos combatentes é mostrada no filme em diversas cenas, como as na prisão da União para os confederados, ou como na disputa inútil de uma ponte que garantiria uma melhor posição estratégica. O cansaço do comandante do acampamento nortista demonstra que quem faz e morre nas guerras são os homens simples, e que em geral não querem lutá-la, enquanto os políticos apenas dão inicio a elas e generais reúnem suas as massas e dão as suas ordens de dentro dos gabinetes. A cena do cemitério repleto de cruzes também dá uma ideia do horror que foi esta guerra fratricida.
Imagem representando batalha
da Guerra Civil Americana
Enquanto o norte era liderado por Lincoln, o presidente confederado era Jefferson Davis. A guerra começou em 12 de abril de 1861 e terminou em 18 de abril de 1865, quando o general confederado Joseph Johnston se rendeu. O norte havia ganho o conflito. Ao fim a guerra, ainda contabilizou outra morte: a do presidente Abraham Lincoln, assassinado por um sulista.
A vitória da União colocou o sul novamente no mapa do país. A escravidão foi abolida, mas isso não significou o fim da exclusão dos negros pela sociedade americana. Pelo contrário, o racismo ainda hoje é uma mácula muito presente no sul dos Estados Unidos.
No filme, três homens procuram um tesouro pertencente aos confederados. No caminho até ele, veem de perto o conflito. É uma obra imperdível em todos os sentidos. Pela bela trilha sonora de Ennio Moricone, pela história contada, pela filmagem, pelos personagens. O bom, o mau e o feio parecem debater sobre o caráter humano, mas de forma simples e singela. Além disso, o filme é um faroeste e não tem como um faroeste ser ruim. Como se não bastasse é um filme de guerra. E também não tem como um filme de guerra ser ruim.
Destaco ainda que, como em toda a história, não existem os “bons” e os “maus”. Claro que se tivesse que escolher um lado, eu apoio o norte. A escravidão africana como mão de obra na América foi um dos fatos mais hediondos da história moderna e contemporânea, que até hoje nos causa repulsa. O tratamento dado aos escravos era o pior possível e até hoje sentimos as consequências da escravidão na sociedade americana. Contudo, ambos os lados cometeram abusos e excessos. A guerra sempre é violenta das duas partes. Por exemplo: os nortistas arrasaram, saquearam e queimaram no mínimo duas grandes cidades do sul, Atalanta e Richmond. Assim, como no filme o “bom”, representado pelo “homem sem nome” do ator Clint Eastwood também comete atos que a nosso ver parecem imorais.
Veja abaixo, o trailer do filme "Três homens em conflito":
 

Bibliografia:
EISENBERG, Peter. A Guerra Civil Americana. São Paulo, editora brasiliense, 1985.
KARNAL, Leandro; Fernandes, Luiz Estevam; Morais, Marcus Vinicius de; Purdy, Sean. História dos Estados Unidos: das Origens ao Século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.
SCHNEIDER, Steven Jay. (editor geral). 1001 filmes para ver antes de morrer. Rio de Janeiro, editora Sextante, 2010.
TRÊS HOMENS EM CONFLITO.Il buono, il brutto, il cattivo. Sergio Leono. Itália/Espanha: 1966.Fox-Microservice. DVD. 161 min., colorido.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A Revolta da Chibata – O Almirante Negro


Temos a mania de criar heróis nacionais. É um fenômeno comum e faz parte da formação das nações. No Brasil, há o Panteão dos Heróis Nacionais, entre os quais constam nomes como o de Tiradentes e Dom Pedro I. Infelizmente, o nome de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, não consta dessa relação.
Mas no que consistiu a Revolta da Chibata? Foi um levante ocorrido na Marinha. Esta era a Força Armada da qual faziam parte os elementos das classes sociais mais desfavorecidas durante o início da “República Velha” ou “República Oligárquica” brasileira. Por isso mesmo, os marinheiros eram vítimas dos piores tipos de castigos.
João Cândido, líder da Revolta da Chibata
No início do século XX era muito mais fácil maltratar os mais pobres. Para quem eles iriam reclamar, se o que recebiam do governo era somente a repressão? Logo, como se não bastasse a situação de penúria, estes ainda por cima, não tinham a quem pedir auxílio ou socorro. Cabe ressaltar que muitos marinheiros eram negros. É possível concluir que os castigos violentos que lhes eram impostos guardam relação com uma herança maldita da escravidão, na qual as punições físicas eram corriqueiras.
Foi nesse cenário que ocorreu em 22 de novembro de 1910, a Revolta da Chibata. A chibata é a ponta do chicote que provocava feridas em quem recebia os seus golpes. Pois bem, esse levante partiu exatamente dos marinheiros pobres e negros, que mais sofriam com a violência dos comandantes.
Os marinheiros amotinados tomaram conta de alguns navios de guerra, chamados São Paulo e Minas Gerais, mataram alguns oficiais e apontaram os seus canhões para a cidade onde estavam atracados: a então capital federal, o Rio de Janeiro. O objetivo dos marinheiros não era derrubar o governo, mas acabar com os castigos físicos violentos. Com os canhões voltados contra si, o presidente Hermes da Fonseca e o Senado aceitaram as demandas dos marinheiros, acabando com a chibata e anistiando os rebeldes, desde que estes se submetessem às autoridades. Os revoltosos concordaram, mas a este fato, seguiu-se uma rebelião dos fuzileiros navais sem relação com a Revolta da Chibata e seus líderes.
João Cândido e os demais, contudo, foram traídos pelo governo brasileiro. Sob a acusação de participaram da rebelião dos fuzileiros, acabaram sendo jogados numa prisão na Ilha das Cobras, litoral fluminense. Depois, levados até a Amazônia num navio chamado “Satélite”, junto de criminosos como ladrões e proxenetas. Nesse meio tempo, muitos morreram devido às péssimas condições e aos fuzilamentos ocorridos na viagem. Após dezoito meses, os líderes da Revolta da Chibata foram finalmente inocentados. Ao fim os marinheiros receberam o que pediam: fim dos castigos físicos e um soldo decente.
Mais de cinquenta anos depois, Aldir Blanc e João Bosco compuseram “O Almirante Negro”, com a seguinte letra:
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

Porém a letra foi censurada pela ditadura militar que assolava o país no período (e tem gente que ainda exalta esse momento pelo qual o Brasil passou). Mudou de nome, passou a se chamar “Mestre-Sala dos Mares”, mudaram alguns versos e foi imortalizada na voz de Elis Regina:
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

Algumas passagens são ainda evidentes menções a João Cândido e à Revolta da Chibata:
Rubras cascatas jorravam das costas/dos santos entre cantos e chibatas – mesmo que a letra original fale em “negros” e não “santos”, a mensagem é clara, remetendo aos castigos e maus tratos e de certa forma, recordando que no Brasil da época, a tortura ainda era uma prática comum e aceita.

Salve o navegante negro/Que tem por monumento/As pedras pisadas do cais – lamentavelmente, a história da Revolta da Chibata ainda é pouco contada. Imaginem a situação durante a Ditadura Militar: um motim dentro das forças armadas provocado por homens negros e pobres.
A letra original ainda fala em “E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas/ Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas /jovens polacas e por batalhões de mulatas”, ou seja, prostitutas da época, mulheres que também sentiam a miséria e a exploração. Ora o “bloco de fragatas” eram os navios tomados pelos marinheiros rebeldes.
Em toda essa questão existe um certo preconceito. Afinal, por serem negros e pobres, os líderes da Revolta da Chibata receberam poucas palmas em vida. Pelo contrário, foram presos e quase condenados. João Cândido hoje tem um busto no Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre e outro na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro. Sua cidade natal, Rio Pardo, no Rio Grande do Sul não prestou nenhuma homenagem. Provavelmente por que ele era filho de escravos, pertencente a uma classe desfavorecida da sociedade.
Mas é curioso perceber como a política faz uso da figura de João Cândido. O integralista, Plínio Salgado se aproximou dele. Recentemente, um deputado do PRONA propôs a colocação de seu nome na galeria de heróis nacionais. Dois políticos marcados pelo conservadorismo, por ideias de um nacionalismo ufanista, e muito próximas do fascismo.
João Cândido não precisa ser herói. O Brasil não precisa de heróis. O “Almirante Negro” apenas deveria ser reconhecido como um brasileiro que sendo pobre, negro, explorado e maltratado lutou contra os abusos, por direitos iguais aos demais.
Confira Elis Regina cantando "Mestre-Sala dos Mares":

Abaixo, Elis cantando a mesma música, mas com a letra que foi censurada. A apresentação foi feita no México:


 
Bibliografia:
MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. São Paulo, Paz e Terra, 2009.
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2006.