quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Adeus Madiba


Acabei de ler na internet, mas não acreditei. Tive que ligar o rádio para confirmar: Nelson Mandela faleceu. Talvez, para as novíssimas gerações essa notícia não tenha muito significado. Mas para nós, que vivemos os idos dos anos 90, Mandela extremamente importante. Um modelo de político e de como fazer política. O homem que lutou contra o repulsivo regime de apartheid sul-africano, um cidadão por quem todos nós torcemos que tivesse sucesso. Ainda lembro da sua chegada ao poder na África do Sul após anos de um sistema racista e excludente.
A África do Sul teve uma colonização europeia relativamente cedo. Desde o século XVII os holandeses da Companhia das Índias Orientais já se instavam ali. No século seguintes, expandiram suas terras e formaram os boeres, camponeses no idioma batavo. Eram portanto, fazendeiros. Tornaram-se extremamente segregacionistas e criaram um grupo próprio: os afrikaaners, com um idioma próprio. Mas os ingleses também tinham interesse na região, o que gerou uma série de disputas sobre a região, sendo a principal dela a Guerra dos Boeres entre 1899 e 1902. O principal interesse em jogo era o ouro da região do Transvaal, onde fica a cidade de Pretória. Em 1910, num contexto de partilha da África, os ingleses e os afrikaaners entraram em acordo, estabelendo o Domínio da África do Sul, uma região que fazia parte do Império Britânico, mas tinha administração autônoma. Ali criou-se um regime segragacionista, no qual os negros que eram 75% da população podiam ter apenas 7,3% das terras.
Em 1948 a África do Sul ficava independente dos ingleses. Era o início do regime aparheid oficialmente. A partir de 1959 o governo racista sul-africano cria os bantustões. Bantustão era o nome dado a reservas de terras nas quais os negros teriam um autogoverno. Ou seja, o objetivo era isolá-los cada vez mais do convívio com os brancos ingleses e afrikaaners.
A resisência ao segregacionismo por parte dos negros sempre existiu. Em 1912 foi criado o Congresso Nacional Africano (CNA), que em princípio, buscava um diálogo com os boeres, o que mostrou-se inviável. A partir dos anos 40, principalmente durante a Segunda Guerra, foram organizadas greves mostrando a insatisfação com o racismo e a exclusão.
É nesse contexto que surge a figura de Mandela, destacando-se ao lado de Oliver Tambo como um dos líderes do CNA. Em 1959 houve uma divisão no CNA, surgindo o Congresso Pan-Africanista, que em 1960 organiza um protesto na cidade de Shapeville contra a lei que limitava o número de trabalhores negros em áreas exclusivas dos brancos. Claro que foi duramente reprimido e as duas organizações são postas na ilegalidade.
Devido a essa situação,o CNA cria um grupo armado, o mK. Em 1963, Mandela é preso e a luta contra o regime de apartheid arrefece. Some-se a isso a existência de regimes excludentes em países vizinhos, como a Namíbia e o alto investimento estrangeiro, que explorava a mão-de-obra barata na região.
A África do Sul tornou-se um dos países mais ricos do mundo, mas os negros viviam na miséria. Nos bantustões não havia nenhum tipo de serviço ou de assistência, o que provocou uma saída em massa dessas regiões. Sem ter para onde ir, acabaram se instalando nas perifierias das grandes cidades sul-africanas, formando verdadeiros guetos, já que não podiam habitar os bairros brancos. Em 1976 houve um levante num desses guetos em Johannesburgo, no lugar conhecido como Soweto, sigla para South West Township. No episódio morreram cerca de 600 pessoas, o que comoveu o mundo. Para muitos jovens de Soweto, a figura de Mandela era importante, como um ícone da luta contra a repressão e o isolamento.
A partir do massacre do Levante de Soweto, o investimento de capitais estrangeiros passou a diminuir no país, até que na década de 80, houve um boicote internacional. Várias revoltas explodiram entre 1984 e 1987, mas o então presidente Pieter Botha não negociava nada com a CNA, considerando-a ilegal, ainda que tenha dado algumas concessões econômicas aos negros.
Em 1989 Franklin De Klerk chega ao poder na África do Sul. Em 2 de fevereiro de 1990, anuncia a legalização da CNA e do Congresso Pan-Africanista, além da libertação de Nelson Mandela e de outros presos por motivos políticos. Uma nova Constituição foi criada entre 1991 e 1992, reunindo 200 pessoas de 19 partidos distintos. No ano de 1992, De Klerk chama a minoria branca para um referendo no qual, decide-se pela continuação das negociações para o fim do aparheid.
Em junho de 1993 é decidido que haveria eleições em abril do ano seguinte. Nelson Mandela foi eleito e pela primeira vez na África do Sul, a maioria escolheu o seu líder. O caminho até o fim do aparheid foi longo e tortuoso e entre 1992 e 1994 houve episódios de violência de brancos com os negros. Apesar disso, Mandela foi muito hábil em costurar um novo país, não baseado na vingança por anos de segregação, mas pela perspectiva de um novo futuro.
Mandela foi uma liderança rebelde dentro da África do Sul contra um regime extremamente racista, por entender que a violência era a única forma de resistir e protestar contra tal repressão. Ficou preso por quase quarenta anos em virtude disso e tornou-se o maior líder do seu país e um dos maiores estadistas do século XX. Apesar dos anos de prisão, Mandela comandou a África do Sul buscando inserir negros e brancos em um só país. Destaca-se o papel de sua esposa, Winnie Mandela, que quando seu marido esteve preso, foi um das vozes mais atuantes contra o regime e pela libertação de Madiba.

Bibliografia:

VISENTINI, Paulo Fagundes. RIBEIRO, Luiz Dario. PEREIRA, Analucia Danilevicz. Breve história da África. Porto Alegre, Leitura XXI, 2007.

Mazrui. Ali A. Mazrui e Wondji. Christophe. História geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília, UNESCO, 2010. Disponível para download.

MACEDO, José Rivair (org). Desvendendo a história da África. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008.

HOBSBAWM,Eric. Era dos Extremos. São Paulo, Ed.Cia, das Letras, 1995.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Impérios. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1998.

domingo, 17 de novembro de 2013

Tabuleta velha, Tabuleta nova – Proclamação da República no Brasil


Já é célebre a passagem do romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó, em que o personagem Custódio, dono de uma confeitaria, mandou que se fizesse uma placa com o nome do estabelecimento “Confeitaria do Império”. Ocorre que a tabuleta foi pintada no dia do “Baile da Ilha Fiscal”, o último suspiro do Brasil Monárquico. Para Custódio, não pegava bem manter o nome antiga. Após cogitar “Confeitaria da República”, ou “Confeitaria do Catete”, optou por algo mais simples: “Confeitaria do Custódio” mesmo.
O episódio denota o que foi o processo da proclamação da república no Brasil, um golpe militar sobre o imperador D. Pedro II. É correta a afirmação de que o monarca vinha sofrendo pressão para o fim do Império de vários setores da sociedade, entre eles, o Exército. Esta era a Força Armada desprezada e mal paga. Mas com a Guerra do Paraguai, o Exército profissionalizou-se, cresceu de importância. Dentro das Academias Militares como a Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, cresciam as ideias republicanas, sobretudo ligadas ao positivismo de Augusto Comte. Já escrevi aqui mesmo no blog uma porção de vezes sobre o positivismo, mas cabe lembrar, que segundo essa doutrina, a República seria a mais perfeita forma de governo e último estágio na evolução de uma sociedade. Junte ao Exército, disputas entre a Igreja e o Estado em virtude do fato de vários ministros serem maçons, num momento em que o papa proibiu a maçonaria para os membros de ordens religiosas. Some ainda setores da burguesia cafeeira paulista, ligados ao Partido Republicano Paulista (PRP), defensores de uma maior descentralização política. A crise econômica deflagrada desde 1875 só piorava a situação.
Assim, formavam-se grupos com diferentes sugestões para o futuro do Brasil, livre do imperador. O grupo dos militares positivistas, que entediam que o governo deveria ser forte e centralizado; o grupo dos cafeicultores paulistas, que defendiam a autonomia para as províncias e um terceiro, conhecido como “jacobino”, formado por profissionais liberais e intelectuais do Rio de Janeiro que apoiavam uma maior participação do povo na República. Mas como derrubar o regime monárquico? Havia três propostas, cada uma ligada a um grupo: os barões do café paulista defendiam um processo lento, através de eleições para o legislativo que teriam deputados republicanos eleitos em maior número, realizando uma transição. Os militares positivistas acreditavam que deveria ser obra do Exército, que teria o poder para tanto. Por fim, os jacobinos viam uma revolução popular como o melhor caminho. Claro que a opção ficou por conta dos setores elites dominantes da sociedade brasileira.
Representação da Proclamação da República
em 15 de novembro de 1889, no Campo de Santana,
cidade do Rio de Janeiro. O evento teve alto valor simbólico,
mas não modificou a realidade social brasileira
Os fatos de 15 de novembro de 1889 foram apenas um empurrão para acabar com a Monarquia, um governo que vinha balançado faz muito tempo. A rigor, a Proclamação da República foi um golpe militar, e no princípio impôs-se um governo de exceção. A responsabilidade do cargo de presidente caiu sobre o marechal Deodoro da Fonseca, articulados da queda de D. Pedro II. Entre 15 de novembro de 1889 e 24 de fevereiro de 1891, o novo mandante governou sob decretos-leis num Governo Provisório. Em 1891 ficou pronta a Constituição republicana e o governo passava para Floriano Peixoto, que já havia afastado-se do positivismo.
A nova Constituição foi elaborada por deputados ligados às oligarquias locais, que defendiam uma maior autonomia para as provínciais. Mas o novo regime tornou-se rapidamente elitista e distante da participação do povo. As revoltas populares do início da República foram devidamente massacradas.
Sobre a Proclamação da República, é famosa a frase de Aritides Lobo de que “o povo assistiu aquilo bestializado”, ou seja, a margem, longe do processo. Para o habitantes das zona pobres do país, que sempre foram maioria, tanto faz se quem governa é o imperador ou o presidente. Para a maioria da população, a situação não mudou.
Mas era necessário adaptar-se aos novos governantes, ou no mínimo reconhecê-los. Era preciso dançar conforme a música. Costúdio tinha sua confeitaria no bairro da Glória, na rua do Catete, onde ficava o Palácio do Catete, sede do governo republicano. Para Custódio, seria um grande problema, afinal, ainda que não significasse grandes mudanças, a população só tinha como opção apoiar o novo regime. Custódio tinha que mudar o nome na tabuleta da confeitaria para continuar sobrevivendo naquele sistema que agora era apresententado. A própria opção de “Confeitaria do Custódio” reflete o quanto importava a República: era melhor um nome neutro do que um tendencioso.
Evidente que os fatos ocorridos em 15 de novembro de 1889 foram importantes em sua época. Mas as mudanças foram muito pequenas. Mudaram mais tabuletas do que estruturas sociais.
Bibliografia:
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo, Edusp, 2006.
CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
TREVISAN, Leonardo. A República Velha. São Paulo, Global editora, 2001.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O primeiro 11 de setembro – golpe no Chile


Onze de setembro é uma data trágica. Além do ataque às torres gêmeas de 2001, foi a data de mais um dos tantos golpes militares na América Latina. O Chile teve seu presidente constituicionalmete eleito, Salvador Allende, há quarenta anos. Vendo o mapa, percebemos que o Chile é um país que estende-se por boa parte da costa oeste da América do Sul, sendo banhado pelo Oceano Pacífico e tem em Santiago sua capital. Também percebemos que é um país muito rico em minérios, uma das bases de sua economia.
Salvador Allende
Allende venceu as eleições para presidência chilena em 1970 pelo Partido Socialista, na coalizão Unidade Popular, que contava com o apoio de diversos grupos políticos de esquerda Partido Comunista e o Partido Social-Democrata. A eleição de Allende apontava para uma via democrática, não revolucionária, para o socialismo. A “experiência chilena” parecia ser uma novidade bastante representativa, na medida em que mostrava-se como uma maneira inédita para chegar no socialismo.
Mas dentro da Unidade Popular havia diversos debates sobre como alcançar o socialismo, dado ao grande leque de grupos de esquerda, que estavam acostumados a proposta da revolução armada como meio para tomada de poder. Mesmo assim, algumas medidas importantes foram tomadas, como a nacionalização da mineração do cobre.
Quem não estava simpatizando com as medidas de Allende era a elite local, o Exército e claro, os EUA. Em 1972 houve sabotagem da produção e greve dos motoristas de caminhão, o que gerou escassez dos meios de consumo. Foi criada uma sensação de ausência de governo e a pressão sobre Allende era fortíssima.
Em 11 de setembro de 1973 uma Junta Militar liderada por Augusto Pinochet, que fazia parte do gabinete de ministros do país até então, exigiu a renúncia de Allende e a entrega do cargo às forças armadas chilenas. Como o presidente
Pinochet e a Junta Militar
eleito negou-se, a Força Aerea Chilena bombardeou o Palacio de la Moneda, sede do governo do Chile. O Exército cercou o local e ao invadir, Salvador Allende foi encontrado morto. A versão oficial aponta para suicídio.
Os norte-americanos deram apoio militar e financeiro ao golpe, com a concordância do presidente Richard Nixon e do secretário de Estado, Henry Kissinger.
Os dias seguintes ao golpe foram extremamente violentos. Tanto é que o número de morto é controverso. Dados mais recentes apontam para 40 mil mortos durante a ditadura, que durou até 1990. Sendo que a maioria foi morta no início. Foram criados verdadeiros campos de concentração, estádios como o Estádio Nacional e o Estádio do Chile tornaram-se grandes centros de tortura e morte.
Palacio de la Moneda, sede do governo
cercado pelo Exército chileno
Muitos dos exilados brasileiros, da ditadura que havia se iniciado por aqui em 1964, foram perseguidos pelo governo de Pinochet. Relatos como o de Fernando Gabeira em “O que é isso companheiro?” ou de João Carlos Bona Garcia em “Verás que um filho teu não foge à luta”, dão conta da realidade antes e depois do golpe. Como fugitivos da ditadura brasileira e militantes de esquerda, foram recebidos de bom grado pelo governo de Allende. Depois do golpe, viram-se novamente perseguidos, dessa vez pela ditadura chilena. A colaboração entre os regimes autoritários sul-americanos durante os anos 70 foi chamada de Operação Condor e contava com a troca de prisioneiros políticos.
A ditadura chilena durou até 1988, quando ocorreu no país um plebiscito para decidir se Pinochet continuaria no comando do país. As alternativas eram SI “sim” ou NO “não”. O NO venceu com 56% dos votos.

domingo, 2 de junho de 2013

Os desaparecidos da Argentina



Um dos assuntos mais em voga na América Latina costuma ser a ditadura argentina. Só nos últimos tempos, foi notícia a morte de Rafael Videla, ditador do país entre os anos de 1976 e 1981 e a suposta colaboração do atual papa, Francisco I, ou Jorge Mario Bergoglio com o regime. E isso não é em vão, pois o regime foi o mais cruel e sangrento entre os seus semelhantes na América do Sul. Presume-se cerca de 30 mil mortos entre os anos de 1976 e 1983.
A História recente argentina é marcada por essa ferida. O século XX argentino, ainda que tenha sido muito complicado, tem grande semelhança com a História brasileira. Entre 1945 e 1955, o país foi governado por Juan Domingues Perón, num sistema muito parecido com o populismo de Vargas. Um Estado forte, intervencionista e corporativo garantia o apoio das massas para Perón. Com isso, formou-se uma disputa interna entre peronistas e antiperonistas, estes defensores do liberalismo econômico, uma espécie de UDN local.
Nesse contexto, surgiram divisões inclusive entre os peronistas, uns à esquerda e outros à direita, principalmente nos anos 60 e 70. A esquerda peronista englobava inclusive grupos armados como o Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP) e o mais importante movimento revolucionário argentino, os montoneros. Segundo tais grupos, o peronismo seria um caminho para o socialismo. Já na direita estavam defensores de uma ditadura centralizada, com muita semelhança ao fascismo, lembrando que Perón abriu os braços argentinos para a vinda de nazistas após a guerra, o que demonstra, no mínimo grande simpatia para com o regime.
Perón: do populismo argentino
nos anos 40 e 50 a perseguição
contra a esquerda nos anos 70
Em 1973, Perón voltou e venceu as eleições para presidente. Ao mesmo tempo, distanciou-se dos setores esquerdistas do peronismo, perseguindo-os, o que acendeu a ação dos grupos como a ERP e os montoneros. Mas Perón morreu em julho de 1974, deixando o cargo de presidente com sua esposa, agora viúva, Isabel Perón. Seu governo foi desastroso. Instaurou-se o caos no país, com um cenário complicadíssimo. A economia estava quebrada; os grupos armados faziam diversas ações e sofriam forte repressão, principalmente de uma organização paramilitar surgida dentro do governo o triplo A (Alianza Anticomunista Argentina) somados com o fraco governo de Isabel Perón possibilitaram o golpe militar de 24 de março de 1976.
Mas os militares que tomaram o poder através de uma junta não queriam apenas acabar com a confusão que estava a Argentina. Queriam extirpar toda a qualquer oposição, ou melhor, eliminar todos os que não concordassem com seu regime. Na Junta assumiram o General Jorge Rafael Videla, o Almirante Emilio Massera e o Brigadeiro Orlando Agosti, chefes das três Forças Armadas, sob o controle do primeiro.
A partir daí, houve uma repressão nunca antes vista na Argentina. Foi uma ação de terrorismo de Estado que consistia em quatro momentos: o sequestro, a tortura, a prisão e a execução, cada um com características próprias.
O sequestro era ao mesmo tempo secreto e ostensivo. Secreto, pois eram feitos com carros não identificados como oficiais. Ostensivo, pois ainda que fossem geralmente de noite, nas casas das vítimas, tinham a colaboração das autoridades e eram feitos para que todos ficassem sabendo. Junto a isso, vinha a pilhagem e o saque dos bens do indivíduo.
Após, estes eram levados para centros de tortura, onde ocorriam agressões físicas e psicológicas das mais diversas e imagináveis. O objetivo era além de tirar informações,
Videla entregando a Copa do Mundo de 1978
para Passarela, capitão da Seleção Argentina.
A Copa de 78 serviu para legitimar a ditadura
e dar apoio popular para o regime a exemplo
do que ocorreu com o Brasil em 1970
degradar a pessoa. Havia cerca de 400 centros de tortura como a famigerada Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Os que sobreviviam à tortura, ou podiam ser liberados, ou vistos como elementos “perigosos”.
Esses perigosos eram levados para a “viagem”, ou seja, para execução. Os corpos podiam ser jogados nas ruas, como se fosse a represália a alguma ação; enterrados em valas comuns que a própria vítima cavava antes do fuzilamento, ou jogado no meio do oceano de um avião.
Ainda que a pena de morte fosse legal na Argentina, ela não atingiu nenhum preso na época, a exemplo do Brasil. Por isso que a Ditadura não contabilizou os “mortos”, mas sim os “desaparecidos”. Foi uma verdadeira chacina. A maioria das 30 mil mortes ocorreu entre 1976 e 1978. Em geral, eram jovens, entre 15 e 35 anos, compreendendo guerrilheiros, militantes políticos, sociais, mas também qualquer um que se opunha ao regime.
Entre os presos e torturados havia mulheres grávidas que tinham seus filhos na prisão. Muitos bebes eram raptados, com suas mães mortas, e entregues para outras famílias, que adotavam-nas ilegalmente, mas sob vista grossa do governo. Até hoje, na Argentina, muitos jovens descobrem que não são filhos de quem pensam que são. Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido raptadas de suas mães.
Na economia, o governo da ditadura buscou derrubar o Estado de Bem-Estar social, intervencionista, que vigorava desde os anos 30 e que tinha a marca das ações peronistas. O ministro da economia durante a ditadura, Martínez de Hoz, tinha em 1976 uma profunda crise na Argentina e via esta intervenção do Estado como a culpada.
O governo proibiu os sindicatos, congelou os salários, tentou a estabilização monetária, privatizou empresas estatais e buscou empréstimo junto a bancos internacionais como o FMI. Formaram-se grandes oligopólios econômicos que concentravam boa parte da renda e da produção do país. Claro que a tentativa de estabilizar a moeda a partir de uma valorização do peso foi totalmente virtual. O peso acabou sendo desvalorizado, e com as taxas de juros liberadas, a especulação tornou-se maior que a economia real. Os gastos do governo só aumentavam e em 1982 a Argentina encontrava-se em profunda crise econômica e com uma pesada dívida externa.
Claro que esse cenário contribuiu e muito para crescer a insatisfação com o governo militar.
Protesto das Mães da Praça de Maio: a denúncia de crimes
contra os direitos humanos resultou numa pressão contra
a ditadura militar na Argentina
Junto a isso, havia a pressão de grupos internacionais e nacionais e denunciavam a violação aos direitos humanos e os diversos crimes da ditadura. Um exemplo é as Mães da Praça de Maio, composto pelas mães dos desaparecidos, que lutavam para saber notícias de seus filhos, protestando na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino. Destaca-se também o papel da Avós da Praça de Maio, que buscavam recuperar os bebês raptados pela ditadura e entregues à adoção.
No início de 1982, uma última cartada dos militares para unificar o país ia por água abaixo: a Guerra das Malvinas conta a Inglaterra pelas ilhas Falkland, que já abordei aqui: http://historiaeavida.blogspot.com.br/2012/02/guerra-das-ilhas-malvinas-ou-falkland.html. Ao final, a Argentina foi derrotada e massacrada com 700 mortos Mas essa foi o derradeiro crime da ditadura. Em junho de 1982 o general Gualtieri renunciou e pressionada, a Junta convocou eleições para o fim do ano de 1983.
O vitorioso foi Raúl Alfonsín, que buscou restaurar a democracia na Argentina. No princípio, os argentinos não puniram os crimes do regime militar. Alguns militares foram punidos ainda nos anos 80, porém essas ações tinham como consequências levantes dos militares. Mas a partir da década de 90 houve o fim da impunidade. A partir de brechas encontradas na lei na questão do rapto de crianças e das pilhagens dos bens dos presos, começou a punição dos responsáveis. Os últimos anos dos governos do casal Kirchner também contribuíram bastante para o aparecimento da verdade e o cumprimento da Justiça.
O general Videla por exemplo, foi condenado em 1985 à prisão perpétua. Porém, recebeu do presidente Carlos Ménem um indulto que o liberava. Em 2007, no governo de Nestor Kirchner foi novamente detido, em prisão domiciliar, para ser levado a um presídio no ano seguinte.
Mas quem eram os criminosos na Argentina? Não somente os generais, mas os torturadores, aqueles que auxiliariam os militares. Talvez o filme “O Segredo dos Seus Olhos” dê uma boa dica sobre isso. O excelente filme argentino traz uma discussão sobre o que é a memória argentina sobre o período. Para quem assistiu a excelente obra (quem não o fez, faça-o), o personagem Goméz, assassino no enredo colaborou com a ditadura, sendo agente do regime.
Ao contrário do Brasil, a Argentina puniu seus ditadores e criminosos, como torturadores durante o período da ditadura. Por aqui a anistia “ampla, geral e irrestrita” permite que assassinos do período da ditadura andem entre nós. A punição dos agentes da repressão não se trata de vingança, mas sim de justiça. Eles tinham todo o aparato do Estado consigo contra grupos de jovens muitas vezes mal armados e mal preparados. Por isso que o discurso que era uma guerra, com dois lados que cometeram erros não cola: os crimes da ditadura não têm justificativa, era um lado muito mais forte que o outro e as medidas tomadas pelos agentes da repressão foram extremistas. Na verdade é mais que uma questão de justiça, mas uma questão moral.
Ainda precisamos buscar muitos dados sobre o período, principalmente por parte dos órgãos do governo. Os arquivos do exército devem ser abertos para investigação e pesquisa por aqui. Cabe ainda destacar que no Brasil, como o Estado assumiu as culpas pelos crimes, está pagando a indenização às vítimas. Logo, o fato de as famílias dos mortos e presos receberem dinheiro está mais do que correto, afinal, é a única forma do Estado pagar de alguma forma pelos erros, já que os criminosos não foram condenados por aqui.

Bibliografia
Romero, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Jorge Zahar Editor Ltda, 2006.

domingo, 19 de maio de 2013

Um passeio no centro – o positivismo através do patrimônio erguido no Centro Histórico de Porto Alegre


Considero que um dos principais elementos do ensino é a vivência, a comprovação e o empírico. Em História podemos trabalhar esses pontos a partir a partir de várias “fontes documentais”. Se tudo aquilo produzido por sociedades humanas do passado pode contar as suas Histórias, então o que foi construído pelos homens também pode nos revelar o passado.
A partir disso, temos a noção de patrimônio histórico. A ideia de patrimônio histórico vem da Revolução Francesa e da necessidade de se construir uma nação. Era necessária fazer a nova pátria francesa, que deveria ter símbolos que a identificassem, sejam eles uma bandeira tricolor, ou a catedral de Notre-Dame. O patrimônio histórico faz parte da nossa memória nacional e local. Afinal, ao que nos remete a Casa Branca, a Torre Eiffel, o Big Ben, ou o Coliseu?
Um simples passeio pelo centro de Porto Alegre pode
contar muito de sua História

E em geral a maior parte desse patrimônio edificado pelo homem encontra-se nos meios urbanos. E não é por acaso. Afinal, a História da Humanidade é marcada por essa transição do rural para o urbano.
E é o centro a parte mais relevante e reveladora de uma cidade. O centro é o coração pulsante, por onde passam milhares de pessoas de vários lugares diferentes. Ali existe a vida humana.
Em Porto Alegre, o centro não é geográfico, ou geométrico, mas histórico. A cidade começou a partir do centro, mas ele não é exatamente no meio dela. Ocorre que apesar de Porto Alegre ter mais de 240 anos, a maior parte do patrimônio histórico data do início do século XX, quando a cidade e o Rio Grande do Sul viviam sob forte influência do positivismo.
O positivismo foi uma doutrina filosófica e social criada pelo francês Augusto Comte em meados do século XIX. Defendia um poder executivo forte, capaz de manter a ordem, para que fosse possível alcançar o progresso. Para tanto, seria importante uma harmonia da sociedade, evitando conflitos entre os grupos sociais. Parece evidente que esta “ideologia” estava ligada a uma elite conservadora, tanto é que um dos lemas do positivismo era “conservar melhorando”, ou seja, trazer o progresso para a sociedade, mas sem alterações sociais.
Comte compreendia a sociedade como um organismo vivo e sua História como uma evolução, cujo ponto máximo seria o Estado Positivo, sob o comando de uma ditadura na forma de República.
O positivismo foi implantado na política rio-grandense por Julio de Castilhos entre 1891 e 1893 com continuidade no governo Borges de Medeiros nos anos de 1898 até 1928. Em Porto Alegre, refletiu-se na administração do intendente (ou prefeito) José Montaury, membro do Partido Republicano Riograndense (PRR), apoiado por Julio de Castilhos e Borges de Medeiros. Montaury era engenheiro e também era positivista, o que se refletiu numa reestruturação do centro da cidade.
Montaury investiu num “embelezamento da cidade”, no padrão estético. Ainda que cauteloso dado o pouco dinheiro disponível, em seu governo foram construídos grandes obras municipais como a Prefeitura (1901), a Biblioteca Pública (1912-1916), a Delegacia Fiscal e o Prédio de Correios e Telégrafos (1913-1914), além de prédios estaduais como o Palácio Piratini e o Arquivo Público do Estado. Para tanto foram contratados engenheiros e arquitetos como os de origem alemã Rudolf Ahrons e Theo Wiedersphan.
Tudo isso, sempre pensado no progresso da capital sul-rio-grandense. Cabe destacar que no início do século XX, Porto Alegre era uma cidade suja, com muitos becos e ruelas. A maioria dos habitantes era composta de pobres e marginalizados. As lideranças viam a necessidade de “varrer” esses cidadãos do centro da cidade, abrindo praças e largas avenidas. Esse processo havia sido em Paris pelo prefeito Hausmann e no Rio de Janeiro, por Pereira Passos, conforme já falei aqui: http://historiaeavida.blogspot.com.br/2012/02/o-bota-abaixo-e-revolta-da-vacina.html. Claro que em Porto Alegre essa prática teve influência do positivismo, afinal, não era interessante para a elite local que a população de “baixo nível” circulasse pelo centro. Para que houvesse progresso, deveria haver ordem, o que, sob o ponto de visto dessa elite, com essas classes subalternas não seria possível.
Um passeio no centro de Porto Alegre pode nos trazer muitas informações sobre a sua história. Assim como em muitas outras cidades. Cada uma tem as suas particularidades históricas, mas quase todas partiram do centro.
Algumas sugestões de lugares para serem visitados, que são ótimas opções para os estudantes conhecerem mais sobre o assunto. É importante que a visita seja guiada e que se elabore um roteiro, caso contrário perderá o sentido. É importante despertar neles o interesse para o significado do que existe no lugar onde eles vivem.
Palácio Piratini, sede do poder executivo no RS:
grande e imponente.
Palácio Piratini – Construído entre 1910 e 1921, a mando de Borges de Medeiros, é a sede administrativa do governador do Rio Grande do Sul. Como o poder Executivo deveria ser hipertrofiado segundo a concepção positivista, o Palácio Piratini é grandioso e imponente. O Salão Principal (Negrinho do Pastoreio) e o hall de entrada possuem o pé direito extremamente alto. Lá dentro nos sentimos como que insignificantes diante do poder, o que era exatamente o objetivo daqueles que o construíram.
Praça Marechal Deodoro, ou Praça da Matriz – é a praça dos três poderes de Porto Alegre, com a sede do Executivo, Legislativo (Assembleia Legislativa) e Judiciário. Ainda tem ao seu redor o Theatro São Pedro, a Catedral Metropolitana e a Biblioteca Municipal. As ruas em volta seguem um esquadrinhamento percebido em muitas cidades coloniais espanholas, com uma praça ao centro, que possui a igreja principal e a sede dos poderes locais. No meio da praça está o Monumento a Julio de Castilhos.
Monumento a Julio de Castilhos – Julio de Castilhos foi o primeiro governador do Rio
Monumento a Julio de Castilhos no
meio da Praça da Matriz, um símbolo
do positivismo
Grande do Sul durante a República, com suas ideias políticas totalmente baseadas no positivismo de Augusto Comte. Um monumento em sua homenagem deveria estar permeado de significados ligados a esta ideia e foi pensado pouco após sua morte no início do século XX.
Em destaque, está o próprio Julio de Castilhos, sentado imponente. Sobre Julio está a figura feminina da República, triunfante. Em frente, guarnecendo a estátua, dois cães, afinal o leão é o símbolo da monarquia, que deveria ser derrotada. A monarquia, aliás, aparece na forma do dragão, rastejando diante de Julio, por ser o símbolo da família real brasileira, Orleans e Bragança. Em uma lateral, aparece novamente Julio de Castilhos, mas envelhecido. Na face sul, um gaúcho montado a cavalo, homenageando o típico representante da terra. Sobre ele, um importante lema positivista “conservar melhorando”.
Biblioteca Pública de Porto Alegre
Biblioteca Pública – lamentavelmente o prédio ainda se encontra em restauro. Mas o lado de fora, a sua fachada representa importantes figuras da história da humanidade, como Júlio César, o que era bastante caro aos positivistas.

Memorial do RS e MARGS – Feitos para serem sede do Correios e Telégrafos e da Delegacia Fiscal, são os melhores exemplos de obras da dupla formada pelo engenheiro civil Rudolf Ahrons e pelo arquiteto Theo Wiedersphan. Construídos entre 1910 e 1913, eram o cartão de visita para quem chegasse na cidade por via do cais do porto. Se o Rio Grande do Sul visava o progresso, então a entrada para sua capital deveria refletir isso. Ainda que a
Imagem de Porto Alegre, foto aérea
da Praça da Alfândega, com o prédio
da Delegacia Fiscal à esquerda e o
prédio de Correios e Telégrafos à direita,
atuais MARGS e Memorial do RS.
arquitetura dos prédios não fosse um reflexo da ideologia positivista, devido ao estilo decorativo, era interessante que o Estado fosse representado nos seus prédios pelo que de novo ou mais contemporâneo havia na arquitetura da época.
Na base do patrimônio histórico está a identidade local construída. Claro que esta identidade é construída por alguns grupos que defendem seus próprios interesses e claro que este patrimônio tornou-se coletivo pertence hoje a todos nós. Os prédios positivistas do centro de Porto Alegre pertencem a nós, porque contam uma importante fase da História do Rio Grande do Sul, da consolidação desse estado. Levar os alunos até estes locais pode ser um bom meio de discutir essa consolidação.
Bibliografia:
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Espaço, sociedade e cultura: o cotidiano da cidade de Porto Alegre”. in: GOLIN, Tau. História geral do Rio Grande do Sul: República Velha, 1889-1930. Meritos Editora, 2007.
MONTEIRO, Charles. “Urbanização e modernidade em Porto Alegre”. in: GOLIN, Tau. História geral do Rio Grande do Sul: República Velha, 1889-1930. Meritos Editora, 2007.
KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Leitura XXI, 2004.
DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. In Cadernos de História do Memorial e Banrisul: A Porto Alegre Positivista. Porto Alegre: Memorial do Rio Grande do Sul, edição online. (Disponível para download).

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Venezuela em seu labirinto: a conturbada Emancipação Nacional



Recentemente ocorreram eleições na Venezuela, com a vitória do candidato da situação, Nicolás Maduro. Este país parece ser a “bola da vez” nas Relações Internacionais da América do Sul, devido à ação do seu ex-presidente, Hugo Chavéz, morto no início de 2013. Adotou como política nacional o que chamou de “Revolução Bolivarista”, ou “Bolivariana”, com evidente alusão à figura de Simon Bolívar. Mas quem foi este indivíduo tão conhecido e tão falado e qual o seu papel na História venezuelana?
Mapa com a Capitânia-Geral
da Venezuela em amarelo
Posso começar a História dessa nação no ano de 1777, quando o rei espanhol Carlos III criou a Capitânia-Geral da Venezuela, centralizada em Caracas. O objetivo era um melhor controle sobre a região que estava ligada ao vice-reinado de Granada, do qual faziam parte, além da já citada Venezuela os atuais Colômbia, Equador, Panamá e regiões do Peru, Brasil e Guiana. Esta medida deve ser entendida como parte das reformas Bourbônicas, que visavam modernizar a administração da coroa hispânica.
A sociedade local, como em tantas outras regiões, dividia-se entre uma elite de mantuanos, os criollos locais (descendentes de espanhóis, nascidos na América) e de chapetones (vindos diretamente da Espanha). Esta elite podia ser tanto de grandes comerciantes do litoral, como de proprietários de latifúndios, que funcionavam no sistema de plantation, produzindo principalmente cacau. Outra parte dessa aristocracia era ligada aos llanos, território semelhante aos pampas, onde se criava gado e onde os senhores de terra tinham papel semelhante ao dos caudilhos. Abaixo, uma grande parcela composta de “pardos”, mestiços pobres e escravos libertos, geralmente trabalhando como peões nos llanos, os llaneros. Por fim, havia os escravos, vindos da África, como ocorreu em toda América.
E o primeiro ensaio para uma emancipação foi dado por escravos em Coro, um dos principais portos da região em 1795. Influenciados pela independência do Haiti, feita por
O líder rebelde Chirino
escravos, um grupo desses trabalhadores da Venezuela rebelaram-se liderados por José Leonardo Chirino, filho de um negro e uma índia e advogado em Coro, e José Caridad Gonzalez, negro fugido da escravidão em Curaçao, que tinham contato com as ideias iluministas.
Dessa maneira, nota-se que a oposição colonial já vinha desenhando-se desde o fim do século XVIII. Quando Napoleão invadiu a Espanha em 1808, tirou o rei Fernando VII do cargo e impôs seu irmão, José Bonaparte no trono espanhol. Contudo, houve uma resistência a essa invasão, sendo uma de suas mais visíveis ações a formação de uma Junta Suprema por parte dos espanhóis. Por meio dela pretendiam manter o controle sobre as colônias. Essa situação levou a uma série de divisões na América sobre quem apoiar: a Junta, ou Napoleão.
Nesse ínterim, ocorreu uma série de levantes pela independência dos países latino-americanos entre 1810 e 1815. Vários cabildos locais declararam emancipação da Espanha. Até então a função do cabildo era meramente administrativa para o controle das cidades. Mas coube ao de Caracas controlar a região da Capitânia-Geral de Venezuela, substituindo as autoridades espanholas em abril de 1810.
Dentro do cabildo de Caracas foi criada a “Sociedade Patriótica de Caracas”, composta de aristocratas criollos, que não acreditava na capacidade espanhola para retomar o controle da região. Por isso, em 5 de julho de 1811, foi declarada a independência venezuelana, criando a República da Venezuela. O novo país precisava de novas leis e dessa maneira, a Sociedade Patriótica, junto ao cabildo de Caracas convocou eleições para que parlamentares trabalhassem na elaboração de uma Constituição para a recém-criada República da Venezuela. O sufrágio para essas eleições teve um caráter censitário, ou seja, era preciso uma renda mínima para votar. Dessa maneira, a elite local manteria o controle, excluindo os pobres, pardos, mestiços e escravos do processo político.
A Constituição para a República da Venezuela, posta em prática em dezembro de 1811, tinha certas peculiaridades: como acabar com o comércio de escravos, mas manter a escravidão. Promulgar a igualdade perante a lei, mas manter o voto censitário. Logo, não havia nenhuma mudança social. As estruturas coloniais eram mantidas para que a elite de mantuanos se mantivesse no poder.
Francisco Miranda
Entre os cabildantes de Caracas e membros da Sociedade Patriótica que elaboraram essa Constituição estavam dois mantuanos que tiveram contato com obras de iluministas como Voltaire, John Locke, e Montesquieu: Francisco Miranda e Simon Bolívar. O último era filho de uma rica família local, plantadora de cacau. Ainda que tivesse participado da elaboração da Constituição, discordava de um ponto: ela era federalista, ou seja, dava autonomia para as provinciais locais, à moda da Carta Constitucional dos EUA. Apesar de simpatizar com esta nação, Bolívar acreditava que a Venezuela deveria ser controlada a partir de um governo forte e centralizador.
A nova República da Venezuela não contava com o apoio de todos habitantes da região. Ainda havia lugares ligados à Espanha como as cidades portuárias de Coro e Maracaibo. No interior, nos llanos, tantos os proprietários de terras, como seus peões, llaneros, se opunham às determinações da Constituição. No litoral, explodiram diversas revoltas escravas, descontentes com a manutenção dessa forma de trabalho.
Assim, duas frentes tentaram destituir o poder da Sociedade Patriótica, agora chamada de Junta Patriótica e do novo parlamento de Caracas. A primeira vinha da antiga metrópole
Simon Bolívar: o líder e herói da
independência venezuelana teve diversas
faces e momentos diferenciados em sua
vida. Em cada uma, agiu de acordo com o
que as circunstâncias lhe ofereciam. Isso
lhe conferiu uma trajetória complexa.
espanhola: em março de 1812 tropas hispânicas desembarcaram em Coro. Ao mesmo tempo, os llaneros formavam uma segunda frente contra a nova república, tendo um dos seus principais líderes José Tomás Boves, proprietário de terras local, comerciante e contrabandista, além de monarquista.
Como se não bastasse, um terremoto atingiu Caracas em 26 de março de 1812, mas não fez maiores estragos nos redutos monarquistas e que apoiavam os espanhóis. De pronto, membros da Igreja e religiosos que faziam oposição ao novo regime afirmaram que foi obra de Deus, contrária a oposição.
Perante essa situação complicada, Miranda assumiu o controle da República da Venezuela em 23 de março de 1812, com poderes ditatoriais. Entretanto, essa situação não durou muito tempo. As tropas espanholas, comandadas por Domingo de Monteverde, que haviam desembaraçado em Coro, chegaram a Caracas na data de 25 de julho de 1812. Miranda capitulou e tentou fugir, mas foi preso por Bolívar. Era o fim da Primeira República.
Simon Bolívar viu-se obrigado a fugir da Venezuela e foi para Nova Granada, que estava nas mãos de criollos rebeldes, o que a separava dos espanhóis. Ali, além de contar com o apoio das lideranças, principalmente de Bogotá, que centralizava Nova Granada, organizou um pequeno exército, mas bem treinado e bem equipado. Assim, numa campanha militar, o agora general Bolívar rumou à Venezuela, conquistando entre março e agosto de 1813 as cidades de Mérida, Trujillo, Valência e por fim, Caracas, conquistando o controle do país.
Com a retomada do poder de Bolívar sobre a Venezuela, iniciava-se a Segunda República. Bolívar institui um governo ao seu gosto: com um poder forte e centralizado, buscando retirar da Venezuela os resquícios da autoridade dos espanhóis. Mesmo assim, continuava excluindo os grupos subalternos, reprimindo com violência as revoltas de negros e mestiços.
José Tomás Boves
Essa situação gerou forte descontentamento entre os pardos, sobretudo os llaneros. Parte desse grupo se uniu em guerrilhas, a mais importante delas comandada novamente por José Tomás Boves, que dizia estar em defesa de pardos e índios. Boves conseguiu reunir cerca de sete mil homens entre peões llaneros, pobres, negros, índios e mestiços. Foi tomando conta do centro do país, até chegar a Caracas em 16 de julho de 1814. Esse trajeto até Caracas foi feito com vários excessos de violência por parte das tropas de Boves. A mesma violência que Bolívar cometeu contra seus opositores.
Por isso, Bolívar foi obrigado a fugir da Venezuela, exilando-se em Cartagena, na Jamaica e por fim no Haiti. Parecia o fim dos esforços pela emancipação no norte da América do Sul, já que Nova Granada fragmentara-se em diversas regiões, o que deu origem ao apelido de “Pátria Boba”, ou seja: foi uma bobagem a suposta união. Enquanto isso, Fernando VII era restituído no trono espanhol e pretendia recuperar as colônias. Assim, o exército espanhol ocupou a Venezuela em 1815 e Nova Granada em 1816.
Mas esse não era o fim derradeiro das aspirações emancipatórias e da ação de Bolívar. Só que ainda não. O exílio de Bolívar forçou-o a repensar suas ideias. Ali surgiu a teoria de unificar a América Latina em uma só pátria, pela qual ficou tão famoso. Ainda se comprometeu com o governo haitiano a acabar com a escravidão.
Bolívar retornou para América do Sul pela Guiana em 1815, dessa vez contando com o apoio dos llaneros. O general percebeu a importância de ter os grupos excluídos ao seu lado, afinal, eles eram a maioria da população. Ele negociou com lideranças negras dos llaneros, como Manuel Pilar e José Antonio Paez, e reiniciou o processo de conquista da Venezuela. Pilar foi condenado à morte por Bolívar, acusado de transformar a luta pela Independência numa luta racial.
Mas Bolívar se comprometera a acabar com as fortes diferenças na sociedade venezuelana, tomando medidas como, por exemplo, distribuir as terras conquistadas entre os soldados llaneros. A partir de Orinoco deu-se a libertação da Venezuela, mas também de Nova Granada, conquistando essas regiões dos espanhóis. A Venezuela – com a queda de Caracas – foi conquistada em julho de 1821 e Nova Granada em maio de 1822, com a tomada de Quito pelas tropas pró-Bolívar.
Mapa representando a Grán Colômbia
Esse momento foi o auge da trajetória pessoal de Bolívar, mas também sua decadência. Em julho de 1822, houve a Conferência de Guayaquil, quando junto de San Martín, Bolívar tentou por em prática seu sonho de ver uma América Latina unificada, com Peru, Bolívia, Nova Granada e Venezuela (que formavam a Grán Colômbia), unidos na Confederação dos Andes, todos sob o governo do próprio Bolívar.
Mas o projeto de unificação de Bolívar não deu certo: a economia foi arrasada pelos tempos de guerra, os campos destruídos. Ao mesmo tempo, os diferentes membros da Confederação dos Andes cobravam empréstimo dados durante a luta pela independência entre si: a Grán Colômbia cobrava do Peru, que cobrava da Bolívia. Ainda havia uma série de revoltas internas de criollos descontentes com os rumos que Bolívar dava para a América. Doente de tuberculose, renunciou a presidência da Grán Colômbia em 4 de maio de 1830, vindo a falecer em 17 de dezembro do mesmo ano em Santa Marta.
Capa de uma das edições brasileiras
de "O General em seu Labirinto".
O livro de Gabriel García Márquez narra
os últimos dias de Bolívar
Esses últimos momentos da vida de Bolívar estão registrados num dos melhores livros de Gabriel García Marquez: “O General em seu Labirinto”. A obra mostra Bolívar doente, sendo obrigado a fugir da Grán Colômbia e impedido de entrar na sua terra natal, a Venezuela. Tanto a elite como a população o hostilizavam e ele estava praticamente sozinho, com exceção de alguns oficiais que lhe permaneciam fiéis. No entanto, sua doença o faz delirar, rememorando o passado glorioso de lutas e conquistas. Ao final do livro, percebemos que Simon Bolívar morreu cedo, com apenas 47 anos, mas deixou um importante legado. A obra de Gabriel García Marquez é interessante, pois acaba transformando um mito em humano.
Sobre o uso dado por Hugo Chavéz no século XXI para a sua política de governo na Venezuela de bolivarismo, acredito ser mera retórica. É importante entender a construção da figura de Simon Bolívar em um herói para a Venezuela – tal qual George Washington é para os EUA e Artigas é para o Uruguai – e perceber a força simbólica disso.
Talvez exista semelhança entre Bolívar e Chavéz no que diz respeito à trajetória política, pois as suas decisões e estratégias tomadas foram frutos das diferentes situações. Se Chavez tomou um rumo mais à esquerda, aliando-se à Cuba, contra as elites locais e contra os EUA, é porque estas tentaram derrubá-lo do poder. Se Bolívar optou por buscar alianças com os grupos desprivilegiados, é porque somente o apoio dos mantuanos não lhe garantiu o poder na Primeira nem na Segunda República.
Chavez foi o segundo governante mais importante da Venezuela, atrás é claro de Bolívar. A polêmica em torno de seu nome desperta amores e ódios, o que compromete uma análise mais apurada, ainda que seja importante um posicionamento por parte do historiador. O problema é justamente esse: ou ele é deus, ou demônio. O fato é que se elegeu democraticamente quatro vezes, o que demonstra grande aceitação popular. Além disso, a pobreza extrema diminuiu muito no país e o PIB cresceu. Ainda assim, a violência aumentou, e faltam produtos básicos, como muitos alimentos para os venezuelanos.
Acredito que a Venezuela permanece no mesmo labirinto: um país subdesenvolvido com graves problemas sociais para resolver. Tal qual era há mais de 200 anos, quando Simon Bolívar fazia parte do cabildo de Caracas e decidiram a separação da Espanha.

Bibliografia
GUAZZELI. Cesar Augusto Barcellos. “A crise do sistema colonial e o processo de independência”. In: WASSERMAN. Cláudia et. all.. A História da América Latina: Cinco séculos. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
 BUSHNELL, David. “A independência da América do sul espanhola”. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina. Da independência até 1870. São Paulo: EDUSP, 2001. (V. 3).
MARQUEZ, Gabriel García. O General em seu Labirinto. Rio de Janeiro, editora Record, 1989.