terça-feira, 10 de abril de 2012

A Revolta da Chibata – O Almirante Negro


Temos a mania de criar heróis nacionais. É um fenômeno comum e faz parte da formação das nações. No Brasil, há o Panteão dos Heróis Nacionais, entre os quais constam nomes como o de Tiradentes e Dom Pedro I. Infelizmente, o nome de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, não consta dessa relação.
Mas no que consistiu a Revolta da Chibata? Foi um levante ocorrido na Marinha. Esta era a Força Armada da qual faziam parte os elementos das classes sociais mais desfavorecidas durante o início da “República Velha” ou “República Oligárquica” brasileira. Por isso mesmo, os marinheiros eram vítimas dos piores tipos de castigos.
João Cândido, líder da Revolta da Chibata
No início do século XX era muito mais fácil maltratar os mais pobres. Para quem eles iriam reclamar, se o que recebiam do governo era somente a repressão? Logo, como se não bastasse a situação de penúria, estes ainda por cima, não tinham a quem pedir auxílio ou socorro. Cabe ressaltar que muitos marinheiros eram negros. É possível concluir que os castigos violentos que lhes eram impostos guardam relação com uma herança maldita da escravidão, na qual as punições físicas eram corriqueiras.
Foi nesse cenário que ocorreu em 22 de novembro de 1910, a Revolta da Chibata. A chibata é a ponta do chicote que provocava feridas em quem recebia os seus golpes. Pois bem, esse levante partiu exatamente dos marinheiros pobres e negros, que mais sofriam com a violência dos comandantes.
Os marinheiros amotinados tomaram conta de alguns navios de guerra, chamados São Paulo e Minas Gerais, mataram alguns oficiais e apontaram os seus canhões para a cidade onde estavam atracados: a então capital federal, o Rio de Janeiro. O objetivo dos marinheiros não era derrubar o governo, mas acabar com os castigos físicos violentos. Com os canhões voltados contra si, o presidente Hermes da Fonseca e o Senado aceitaram as demandas dos marinheiros, acabando com a chibata e anistiando os rebeldes, desde que estes se submetessem às autoridades. Os revoltosos concordaram, mas a este fato, seguiu-se uma rebelião dos fuzileiros navais sem relação com a Revolta da Chibata e seus líderes.
João Cândido e os demais, contudo, foram traídos pelo governo brasileiro. Sob a acusação de participaram da rebelião dos fuzileiros, acabaram sendo jogados numa prisão na Ilha das Cobras, litoral fluminense. Depois, levados até a Amazônia num navio chamado “Satélite”, junto de criminosos como ladrões e proxenetas. Nesse meio tempo, muitos morreram devido às péssimas condições e aos fuzilamentos ocorridos na viagem. Após dezoito meses, os líderes da Revolta da Chibata foram finalmente inocentados. Ao fim os marinheiros receberam o que pediam: fim dos castigos físicos e um soldo decente.
Mais de cinquenta anos depois, Aldir Blanc e João Bosco compuseram “O Almirante Negro”, com a seguinte letra:
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

Porém a letra foi censurada pela ditadura militar que assolava o país no período (e tem gente que ainda exalta esse momento pelo qual o Brasil passou). Mudou de nome, passou a se chamar “Mestre-Sala dos Mares”, mudaram alguns versos e foi imortalizada na voz de Elis Regina:
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

Algumas passagens são ainda evidentes menções a João Cândido e à Revolta da Chibata:
Rubras cascatas jorravam das costas/dos santos entre cantos e chibatas – mesmo que a letra original fale em “negros” e não “santos”, a mensagem é clara, remetendo aos castigos e maus tratos e de certa forma, recordando que no Brasil da época, a tortura ainda era uma prática comum e aceita.

Salve o navegante negro/Que tem por monumento/As pedras pisadas do cais – lamentavelmente, a história da Revolta da Chibata ainda é pouco contada. Imaginem a situação durante a Ditadura Militar: um motim dentro das forças armadas provocado por homens negros e pobres.
A letra original ainda fala em “E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas/ Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas /jovens polacas e por batalhões de mulatas”, ou seja, prostitutas da época, mulheres que também sentiam a miséria e a exploração. Ora o “bloco de fragatas” eram os navios tomados pelos marinheiros rebeldes.
Em toda essa questão existe um certo preconceito. Afinal, por serem negros e pobres, os líderes da Revolta da Chibata receberam poucas palmas em vida. Pelo contrário, foram presos e quase condenados. João Cândido hoje tem um busto no Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre e outro na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro. Sua cidade natal, Rio Pardo, no Rio Grande do Sul não prestou nenhuma homenagem. Provavelmente por que ele era filho de escravos, pertencente a uma classe desfavorecida da sociedade.
Mas é curioso perceber como a política faz uso da figura de João Cândido. O integralista, Plínio Salgado se aproximou dele. Recentemente, um deputado do PRONA propôs a colocação de seu nome na galeria de heróis nacionais. Dois políticos marcados pelo conservadorismo, por ideias de um nacionalismo ufanista, e muito próximas do fascismo.
João Cândido não precisa ser herói. O Brasil não precisa de heróis. O “Almirante Negro” apenas deveria ser reconhecido como um brasileiro que sendo pobre, negro, explorado e maltratado lutou contra os abusos, por direitos iguais aos demais.
Confira Elis Regina cantando "Mestre-Sala dos Mares":

Abaixo, Elis cantando a mesma música, mas com a letra que foi censurada. A apresentação foi feita no México:


 
Bibliografia:
MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. São Paulo, Paz e Terra, 2009.
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

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