O Brasil estava, como é possível perceber, sob domínio espanhol, conhecido como União Ibérica. Houve uma primeira tentativa de invasão holandesa, fracassada em Salvador em 1624. Mas seis anos depois, os holandeses conquistaram Olinda. Até 1637, os batavos haviam tomado a região entre o rio São Francisco e o atual Ceará.
Maurício de Nassau |
Entre 1637 e 1644, o poder holandês na região se consolidou, principalmente pelas medidas tomadas pelo administrador Maurício de Nassau. Ele vendeu a crédito os engenhos dos que haviam abandonado a região, incentivou a produção de mandioca - principal alimento da maior parte da população - implementou melhorias urbanas em Recife e foi tolerante com a diversidade religiosa local, composta de católicos, protestantes e judeus.
Uma pergunta possível de ser feita é: qual o interesse holandês no nordeste? Simples: o açúcar. Este era um dos principais produtos da economia no século XVII. Para o controle da produção açucareira, do transporte e venda na Europa, surgiu a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Criada com capital do Estado e de particulares, ela ainda gerenciava a venda de escravos. Importante destacar que os holandeses não acabaram com a escravidão africana no Brasil.
Em laranja, região dominada pelos holandeses |
A reconquista se deu entre 1645 e 1654. A essa altura, Portugal estava livre da Espanha, desde 1640. Entre os principais articuladores dessa rebelião contra os holandeses estavam Fernandes Vieira, Henrique Dias e Felipe Camarão (sim, os mesmos que dão nomes a ruas localizadas no coração do bairro Bom Fim em Porto Alegre). O primeiro era português cristão-novo (judeu convertido), o segundo era negro e o terceiro era indígena.
Henrique Dias |
Felipe Camarão |
Este fato é um dos argumentos para aqueles que defendem que o Brasil era uma “união das três raças”. Mas na realidade, os portugueses tinham forte apoio dos senhores de engenho local. Negros escravos, índios, cristãos-novos, mestiços, pobres sempre foram grupos a margem da sociedade colonial. Porém, me parece que ao lutar do lado dos lusitanos, estavam tentando se inserir nesta sociedade, prestando serviços ao rei português para que no futuro fossem, de alguma maneira, recompensados.
Outra figura destacada nesse período é a de Calabar, conhecido como “o grande traidor”. Ele era um português que no primeiro momento da invasão, entre 1630 e 1637 cooperou com os holandeses, por ser um conhecedor do terreno. Contudo, foi preso e morto pelos lusos. A rigor não foi só ele que apoiou os holandeses, caso contrário, eles não dominariam o nordeste brasileiro por vinte e quatro anos. Boa parte da população local os ajudava, principalmente aqueles excluídos na sociedade colonial portuguesa.
Um interessante retrato desse período é a peça “Calabar”, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Nela, é retratada a história da “traição” e a morte por execução do personagem-título. Criada em plena ditadura militar, a obra pode também ser entendida como uma crítica ao regime.
Capa de "Calabar", disco censurado |
Nela, Calabar deixa de ser o traidor, para se tornar quase um herói. Podemos aproximar esta proposta da peça com o momento histórico que vivíamos nos anos 70, imaginando quem a ditadura transformava em traidor, e quem eram os heróis. Me parece que a relação crítica com a construção de uma imagem negativa por parte dos militares daqueles que se opunham à ditadura é evidente. Gostaria de destacar a música Fado Tropical, presente em “Calabar”. Vamos analisar alguns trechos da música:
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Conforme o pai do Chico, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, Portugal pretendia recriar seu país na terra brasileira, “o imenso Portugal”. Ainda para Sérgio, os batavos teriam errado em não ter o mesmo objetivo. “Esta terra”, segundo os lusitanos deveria fazer parte do império colonial português. Deve-se levar em conta que no início dos anos 70, Portugal também sob ditadura. A ironia em falar que “esta terra ainda vai cumprir seu ideal” é facilmente percebida.
Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo...(além da
sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...
O que nós herdamos afinal de Portugal? Mais uma vez, volto para Sérgio Buarque: o “homem cordial”. Não necessariamente um homem gentil, mas um homem que tem pouco apreço pelo ritualismo social. Ou seja, as relações sociais no Brasil sempre foram intimistas, familiares. Isso acaba se refletindo na gestão pública sempre tão conectada com os interesses particulares, para o mal e para o bem. É a mistura entre o particular e o público. Detalhe: a palavra “sífilis” foi cortada do disco original nos anos 70 pela censura imposta pela ditadura. Analisando nosso país nos dias de hoje parece que herdamos muita coisa além da sífilis...
O que as invasões holandesas têm a ver com isso? Bem, de alguma forma, a administração de Maurício de Nassau foi pretensamente racional, escapando dessa ideia do “homem cordial”. Os holandeses tinham objetivos econômicos no nordeste brasileiro, como o comércio do açúcar e de escravos. Tanto que o controle da região era feito pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, uma empresa voltada para o capitalismo comercial.
Creio que não existe “se” em história. Assim como não existe o “se” no passado, ou o “se” nas nossas vidas. Se minha avó tivesse barba, ela seria meu avô... simples. O “se” em História é um artifício pra vender revista ruim. Mas, vamos abrir uma exceção e fazer um exercício de imaginação: o que seria da região “se” os holandeses permanecerem?
A resposta pode estar no Suriname. Uma metrópole é sempre uma metrópole. Mas muitos holandeses saíram dali para fundar Nova Iorque, alguns podem argumentar. Sim, mas em Nova Iorque não havia nada para se explorar, não havia o açúcar e a venda de escravos para a região era em menor número. Foi outra maneira de colonizar, mais pela necessidade de se encontrar uma terra habitável e expansão de territórios do que pelo sistema mercantilista vigente nas relações econômicas do momento.
Por fim, quero destacar uma das falas de uma personagem da peça “Calabar”, Bárbara, que de certa forma pode ser uma resposta à pergunta acima: “um dia este país há de ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis, portugueses... Um dia, todos os países poderão ser independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar.”. A dominação é sempre a mesma, não importa quem estiver dominando, portugueses, holandeses, espanhóis.
Mais do que uma peça histórica, Calabar é um libelo pela liberdade. A sugestão de que termos como “culpa” e “traição” podem ser relativizados. Para existir a liberdade, existiram sujeitos apontados como “traidores” e “culpados”. Tudo depende da posição que nos colocamos para observar. A associação com o contexto histórico da ditadura militar é mais uma vez bastante clara.
Deixo vocês com a música do Chico Buarque, “Fado Tropical”. Não prestem atenção nas figuras, apenas na música, OK?
Bibliografia:
Fausto, Boris. História Concisa do Brasil. Edusp, São Paulo, 2006.
Holanda, Chico Buarque de. Calabar: o elogio da traição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974.
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. (A primeira edição da obra é de 1936)
ótimo texto!!!
ResponderExcluirOtimo texto mesmo!!! Vou fazer uma prova sobre isso amanhã, ajudou muito a fixar a leitura do livro.
ResponderExcluirGostei bastante deste texto, me ajudou bastante nas dúvidas a cerca de Calabar.
ResponderExcluircalabar nasceu em alagoass(Porto Calvo)nao?Nao sendo obviamente portugues
ResponderExcluir