quarta-feira, 23 de maio de 2012

A luta no Zaire


Final do combate entre Ali e Foreman,
com este último nocauteado
Em 1974 ocorreu uma das mais espetaculares lutas de boxe da História. Os maiores pugilistas peso-pesados da época, Mohamed Ali e George Foreman se confrontaram em Kinshasa no então Zaire sob os olhos de milhões de telespectadores. O Zaire, hoje conhecido como República Democrática do Congo era governado de forma ditatorial por Mobutu, que não foi ao evento ocorrido em um estádio local com medo de ser morto.
Congo foi o nome que os colonizadores belgas deram para a região. Em 1886, após a Conferência de Berlim, que dividiu o continente africano entre as nações europeias (sim, a África foi dividida arbitrariamente entre os europeus), o Congo se tornou propriedade privada do rei da Bélgica, Leopoldo II. Os belgas investiram um alto capital, explorando minérios e grandes plantações para fabricação de borracha através de monopólios da metrópole geralmente assumidos por indústrias.
Trabalhadores africanos - vindos
de Ruanda -
numa mina no Congo nos anos 20
 A colonização do Congo pela Bélgica deve ser inserida no contexto do “imperialismo”, ou seja, a expansão europeia em direção à África e Ásia, retomando as piores características da colonização da América. Assim como no resto do continente, o domínio dos belgas sobre o Congo também foi marcado por atrocidades e pela violência perante as populações nativas.
Estas eram submetidas a um “paternalismo excludente” que as mantinham inferiorizadas perante os europeus. Por exemplo: aos africanos não era permitido que estudassem além do nível primário, que corresponderia ao nosso Ensino Fundamental. Também lhes era proibido frequentar os mesmo círculos sociais que os belgas.
A situação do Congo só foi mudar nos anos 50 do século XX. Ao mesmo tempo em que a Bélgica começava a pensar na possibilidade de independência, os congoleses começam com seus movimentos nacionalistas. Havia dois principais: o ABAKO, liderado por Joseph Kasavube e o Movimento Nacional Congolês (MNC), liderado por Patrice Lumumba. Este último tinha uma ideia de um país unificado, ao contrário do ABAKO que previa uma separação entre as etnias locais.
Patrice Lumumba
Em 1959 os belgas abandonaram o Congo e a sua emancipação foi declarada no ano seguinte. As eleições no novo país escolhem Kasavubu como presidente e Lumumba como primeiro-ministro. Mas as diversas etnias aliadas às diferenças de desenvolvimento de cada região geraram uma violenta guerra civil. Surgem movimentos separatistas como o de Moises Tschombé, aliado de transnacionais europeias, que proclama a independência da província de Katanga.
O conflito teve repercussão no poder do país. Lumumba foi derrubado em setembro de 1960, sendo assassinado no ano seguinte. O caos se instala. No ano seguinte, a ONU reintegra Katanga e Tschombé foge. Mas quando as forças de paz deixam o Congo ele volta e assume e como primeiro-ministro.
Em 1965, Mobutu, que havia sido o responsável pela prisão e morte de Lumumba, dá um golpe de estado, assume a presidência e centraliza o poder. O nome do país é mudado de Congo para Zaire, uma denominação anterior ao domínio belga. No entanto, a nova nação continuava dependendo do capital internacional ligado aos interesses econômicos ocidentais, tal qual na época colonial.
Claro que a luta entre Ali e Foreman foi em parte patrocinada por Mobutu na expectativa de aumentar sua popularidade. Soma-se a isso a defesa dos direitos dos afrodescendentes nos EUA contra o segregacionismo racial, a qual Ali apoiava. Não esquecer que o cinturão de campeão dos pesos-pesados lhe foi retirado por ter se recusado a ir ao Vietnã, “lutar contra os vietcongues”. Conforme Ali: "Nenhum vietcongue me chamou de crioulo, porque eu lutaria contra ele?". Ele foi o desafiante de Foreman e o luta ser na África também está ligado ao combate contra o racismo da parte de Mohamed Ali.
Mobutu
A luta está registrado no documentário “Quando éramos reis” (no original When we were kings) do diretor Leon Gast, lançado somente em 1996. Nele pode-se perceber, além da atmosfera da luta, a situação social de miséria do povo do Zaire. As cicatrizes do regime imperialista belga pode ser notada também, quando, por exemplo, George Foreman desembarca do avião com dois pastores alemães, cães que eram usados pelas forças militares dos colonizadores para oprimir manifestações da população nativa.
Mobutu exerceu um governo extremamente personalista, institucionalizando a política nacional em torno de si. De certo modo ele tirou o país do caos depois da guerra civil dos anos 60, mas com um regime ditatorial. Em síntese, o governo era monopólio dele. A ditadura de Mobutu ainda durou longos anos. Ele só foi cair em 1996, quando a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Zaire, uma milícia liderada por Laurent Kabila avançou pelo país até Kinshasa, destituindo Mobutu. O país trocou novamente de nome para República Democrática do Congo, mas as mudanças foram pequenas. O controle da mineração, principal fonte de produção nacional, apenas passou das mãos de empresas europeias para norte-americanas. Apesar do território congolês ter recursos minerais e naturais em abundância, grande parte de sua população vive na miséria. Veja o trailler do filme "Quando éramos reis":

Bibliografia:

VISENTINI, Paulo Fagundes. RIBEIRO, Luiz Dario. PEREIRA, Analucia Danilevicz. Breve história da África. Porto Alegre, Leitura XXI, 2007.

Mazrui. Ali A. Mazrui e Wondji. Christophe. História geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília, UNESCO, 2010. Disponível para download.
LINHARES, Maria Yeda. A luta contra a metrópole (Ásia e África). São Paulo, Brasiliense, 1981.

terça-feira, 8 de maio de 2012

“... um sandinista especialista em granada de mão”


Já me referi aqui à banda britânica The Clash. Muitas de suas músicas têm um forte cunho político. Em 1980 foi lançado o álbum “Sandinista!”. O título homenageia o movimento guerrilheiro nicaraguense. Aqui no rock gaúcho The Clash e a Nicarágua também tiveram sua influência: Jimi Joe compôs e Os Replicantes gravaram “Sandina”. É a história de um cara abandonado pela mulher que foi lutar ao lado do sandinismo na Nicarágua. A letra é uma preciosidade, escute a versão de Jimi Joe:

Sábado todo/eu chorei de mágoa/ minha garota/foi pra Manágua.
A Nicarágua (que tem em Manágua a sua capital), assim como grande parte da América Central foi por muito tempo um “quintal” dos EUA. Desde o início do século XX os ianques implementaram a política do “big stick” sobre o continente, que se baseava no direito de usar a força para intervir em conflitos ou posições que lhes fossem contrárias. A relação dos EUA com a América Central se assemelha muito com o neocolonialismo, ou imperialismo britânico sobre Ásia e África. Assim, em 1912 o exército norte-americano invade o país em contrapartida de uma rebelião popular.
Sandino
Em 1927, a Nicarágua é novamente vítima de um ataque de Washington. Mas dessa vez, os nicaraguenses resistiram. Liderados por Augusto Cesar Sandino, um camponês pobre, montam uma guerrilha que trava as pretensões americanas e das elites que comandavam o país. Lutando contra o governo do então presidente Jose Maria Moncada, que era apoiado pelos EUA, Sandino obteve importantes vitórias militares. Em princípio defendiam um nacionalismo e contra a intervenção estrangeira, com o tempo contaram inclusive com o apoio das esquerdas. A luta da guerrilha durou até 1934 quando Sandino foi morto a mando de Anastácio Somoza García, apelidado de Tacho.
Este último viria a ser o próximo presidente do país, em 1937. Passou a perseguir os guerrilheiros, desarticulando a oposição. A reorganização sandinista só voltou na virada da década de 50 para 60, com as propostas de um sistema social igualitário, reforma agrária e o direito de todos as trabalho. Se formava a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional). Mas a família Somoza mantinha o poder através de Anastácio Somoza Debayle, Tachito, filho de Tacho. A repressão aos sandinistas é mais uma vez muito violenta, sobretudo pela Guarda Nacional, espécie de exército defensor do governo.
A oligarquia Somoza governava a Nicarágua, tal quais outras oligarquias controlavam a América Central com o apoio americano. Mas o governo de Jimmy Carter eleito em 1976 tentou mudar esse panorama, buscando uma política de “direitos humanos”, se opondo a ditaduras para afastar a face de “império americano” que Nixon e outros antecessores haviam construído. Parou de enviar armas para a Nicarágua e cortou o apoio oficial por não ver em Somoza um bom aliado na América Central.

Lutar pela revolução... ela me deixou/me trocou/ por um sandinista especialista/ em granada de mão.
Durante os anos setenta, cansados da manutenção dos Somoza no poder a população passa a aderir aos sandinistas, apesar das perseguições da Guarda Nacional. Em 1978 os guerrilheiros realizam um ataque ao Palácio Nacional que com vinte e cinco pessoas fazem 1500 reféns. No ano seguinte, as ações aumentam e se dá a “Revolução Sandinista”.
No início do ano, os guerrilheiros conquistam importantes cidades no norte do país. Na Semana Santa, Estelí uma das maiores cai nas mãos dos sandinistas. A FSLN conquistava importantes posições no país e ganhava amplo apoio da população. Sua combinação de marxismo com nacionalismo anti-imperialista e Teologia da Libertação mobilizava as massas. Não esquecendo que o marxismo está ligado à luta revolucionário pelo comunismo e a Teologia da Libertação é um movimento católico que combina religião com a luta contra injustiças sociais.
Bandeira dos sandinistas
Mesmo que os EUA não apoiassem oficialmente Somoza, mercenários americanos faziam parte das forças paramilitares que reprimiam a revolta. Destaca-se também empréstimo do FMI para a Nicarágua no período. Os sandinistas, por sua vez recebiam apoio estrangeiro, como da Costa Rica, Venezuela e Cuba. Os meses de junho e julho foram decisivos. Na capital Manágua, foram montadas barricadas da população contra o governo. Uma greve geral foi declarada e o país parou. Os sandinistas já haviam controlado a maior parte da Nicarágua. Assim, Somoza renuncia e foge em 17 de julho de 1979. Seu líder no Legislativo esboça uma reação, dizendo que iria assumir o governo, mas também foge. Os sandinistas haviam vencido a revolução.
Forma-se uma Junta Provisória para o governo, que enfrenta inúmeros problemas econômicos, porque a luta havia consumido muito dinheiro e país deveria ser reconstruído, o que envolveria altos gastos. Mesmo com o apoio financeiro de Cuba e da URSS, interessada em ter na Nicarágua um aliado, os anos que se seguiram foram difíceis.
Mapa da Nicarágua
Como se não bastasse, o fim do governo Carter e o início da era Reagan nos EUA marcou o retorno de uma política conservadora e agressiva por parte dos ianques para com países que adotassem posições que lhes fossem contrárias. Dessa maneira em 1981 teve o início de “operações encobertas” da CIA contra a Nicarágua. A mais conhecida foi o caso dos “Contras”, grupo paramilitar formado por ex-membros da Guarda Nacional, que a partir de Honduras atacaram o país, sem conseguir se estabelecer ali, porém causando danos à população. Em 1983, os americanos impuseram um bloqueio naval ao país.
A rigor a preocupação com a Nicarágua não se devia a importância do país. Economicamente e militarmente, esta nação da América Central era irrelevante. Mas sua influência sobre outros países como o Panamá, Guatemala e El Salvador, junto do apoio dado pela URSS, mesmo que os sandinistas não fossem simples “clientes de Moscou”, deixava os americanos em alerta. Ainda que a Nicarágua não fosse Cuba e a FSLN não tivesse Fidel Castro como líder, os EUA pretendiam reassumir sua condição de controle sobre a situação.
Em 1990, contudo, os sandinistas perderam a eleição através de Daniel Ortega. A queda da URSS resultou no fim da ajuda econômica, que junto do desgaste provocado pelo conflito motivado pelo governo Reagan, tirou a esquerda do poder. Hoje, a FSLN é um dos principais partidos nicaraguenses.
Acompanhe a letra de “Sandina” na íntegra e escute a versão dos “Replicantes”:
Sábado todo
Eu chorei de mágoa
Minha garota
Foi pra Manágua

Lutar pela revolução
Lutar pela revolução
Todo mundo vai embora
Todo mundo tem sua hora

Ela me deixou
Ela me trocou
Por um sandinista especialista
Em granada de
mão

 
Bibliografia:
MAREGA, Marisa. A Nicarágua Sandinista.  São Paulo, editora brasiliense, 1981.
SCHILLIG, Voltaire. EUA x América Latina: as etapas da dominação. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
VICENTINI, Paulo. Da Guerra Fria à Crise (1945-1990). Porto Alegre, Editora da Universidade, 1990.