quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O bota abaixo e a Revolta da Vacina

Rua do Mercado: exemplo de uma das estreitas vias
do Rio de Janeiro que resistiu ao "bota abaixo"
No início do século passado, a então capital federal, cidade do Rio de Janeiro, ainda apresentava características urbanas do período colonial. O centro era repleto de vielas e pequenas ruas, por onde escoava a produção nacional de café em direção ao porto e por onde deveria circular a mercadoria que chegava pelo mesmo. As ruas eram estreitas, nelas não seria possível passar um carro, andavam somente pessoas, carroças, carrinhos de mão. Esta formação urbana era consequência do crescimento desordenado da cidade.
Em 1763, o Rio de Janeiro tornou-se a capital da colônia. Em 1808, a família real chegou ao país junto da corte portuguesa. Foram aumentos populacionais significativos muito rapidamente. Ao mesmo tempo, milhares de desfavorecidos procuravam a cidade em busca de oportunidades. No início do século XX, sua população era de mais de 500 mil habitantes.
Exemplo de cortiço
Essa população mais pobre habitava justamente o centro da cidade. Suas moradias eram os antigos casarões, onde diversas famílias viviam juntas em situação de penúria e de pouca qualidade de vida. Estes prédios eram conhecidos como cortiços. Tal realidade está retratada no livro “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, lançado no fim do século XIX. Essa obra descreve a vida num destes lugares, não sem escorregar numa perspectiva preconceituosa: a de que o meio determina o comportamento humano. Assim, as pessoas que ali habitavam eram corrompidas pelo meio. Ou seja: os mais pobres tinham hábitos que poderiam desvirtuar os demais, como é o caso de Jerônimo, um português trabalhador que, ao chegar ao cortiço, transforma-se num malandro; ou de Pombinha, que era uma moça rica, pudica e mimada, perde seu pai, vai morar no cortiço e, ao fim, acaba se prostituindo.
O Rio de Janeiro ainda era um “antro” de doenças tropicais, como a febre amarela e a varíola. Acreditava-se que a acumulação de pessoas em espaços reduzidos era a causa dessas doenças. Os miseráveis do centro do Rio de Janeiro eram considerados culpados pelas autoridades de espalhar as enfermidades, de disseminar a violência e o banditismo. As elites acreditavam que eles deveriam ser retirados da região, para transformá-la numa região “limpa”, ou seja, própria para a burguesia local.
Quem colocou esse plano em prática foram o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, e o presidente da República, Rodrigues Alves, a partir de 1901. A ideia era simples: derrubar os velhos casarões que serviam de cortiço, retirar os mais pobres, considerados pelas elites como “classes perigosas” do centro da cidade e abrir largas avenidas, dando fim às ruelas e pequenas vias do período colonial. Lembram de “O Cortiço”? Pois bem, a visão das elites da época era exatamente essa: a população mais necessitada era perigosa, composta de meliantes e, afinal, “o meio corrompe”. O objetivo ainda era possibilitar a circulação de pessoas e dificultar a formação de barricadas por parte da população mais pobre. A política de derrubar as velhas construções da capital federal foi conhecido popularmente como “bota abaixo”.
Pereira Passos
Rodrigues Alves

A ação baseou-se nas práticas do prefeito de Paris, Eugene Haussmann, trinta anos atrás. Na sua gestão, ele remodelou a capital francesa, pondo fim às antigas e estreitas ruas, palcos da Comuna de Paris, e das trincheiras montadas pelos populares, abrindo largos bulevares. Pereira Passos morava em Paris na época e viu esse processo de perto. Mas para onde essa população expulsa do centro da cidade foi? Alguns bairros mais periféricos já eram habitados pela classe média da época. A solução foi construir barracos nos abundantes morros, dando origem às atuais favelas. Como se vê, o problema é antigo, causado pelas próprias autoridades cariocas.
As demolições começaram em fevereiro de 1904. Em novembro do mesmo ano, foi imposta a vacinação obrigatória contra a varíola. Era o estopim: a maioria do povo pertencente à classe menos favorecida se revoltou contra a determinação. Em geral, os agentes da vacinação eram truculentos, invadindo as residências e aplicando as vacinas muitas vezes a força. Várias ruas da cidade foram tomadas pelos amotinados. Foi o movimento conhecido como Revolta da Vacina. Claro que foi massacrado pela repressão do governo de Rodrigues Alves.
Bonde virado por
amotinados durante
a Revolta da Vacina
A rigor foi uma rebelião contra os excessos cometidos pelas autoridades contra uma população carente e necessitada. Por muitos anos, ao invés de auxílio, essa população só ganhou reprimendas e se viu prejudicada. A vacina foi somente a gota d’água, a causa imediata da revolta.
O projeto de República implantado em 1889 era liberal do ponto de vista econômica, autoritário do ponto de vista político e excludente do ponto de vista social. O objetivo era "trazer a civilização" ao país, e nessa "civilização" não se enquadrariam as classes populares, que segundo a ótica da época deviam ser afastadas do que era visto como "gente de bem", ou seja, as elites. É, parece que pouca coisa mudou desde 1904.
Bibliografia:
BENCHIMOL, Jaime. “Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro”. in: FERREIRA, Jorge. e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. Vol.1 O tempo do liberalismo excludente. Da proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Ed. Scipione, 1997.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Guerra das ilhas Malvinas (ou Falkland?)

Mapa indicando a localização das
Malvinas
Em 1982 a Argentina vivia sob pesada ditadura militar, que chegou a matar 30 mil pessoas. O regime autoritário instalado em março 1976, contudo, vinha enfrentando oposição: uma crise econômica se instalara no país trazendo desemprego, inflação, quebra de bancos e empresas e recessão econômica. Enfim, é claro que esse quadro gerou descontentamento.
Em abril desse ano, o presidente ditador argentino, Leopoldo Fortunato Galtieri encontrou uma “solução mágica”: unir o país em torno de algo. Esse “algo” seria as ilhas Malvinas. Alvo de disputa entre as coroas espanhola e inglesa, este território foi tomado da Argentina, recém emancipada, pela Inglaterra em 1833. Os britânicos passam a chamar a região de ilhas Falkland. Esta era, portanto, uma antiga reivindicação nacionalista dos argentinos.
No dia 2 de abril, o exército argentino desembarcou nas Malvinas, ocupando a ilha. Tudo parecia ir bem, mas faltou “combinar com os russos”, ou nesse caso, com os ingleses. Eles não pretendiam abrir mão da soberania da região e numa estratégia semelhante a de Galtieri, a primeira-ministra Margareth Thatcher  decidiu enviar tropas para intervir na região. Claro que investida inglesa pode ser vista como uma forma de neocolonialismo.
Bandeira das Malvinas.
Observem a bandeira do Reino Unido acima à esquerda.

A Argentina esperava apoio dos EUA, afinal, os americanos eram beneficiados pela ditadura do nosso país vizinho. Mas não foi isso o que aconteceu. A Argentina ficou sozinha na disputa e não foi páreo para os soldados de Sua Majestade. A guerra foi relativamente breve, durou dois meses, o suficiente para matar cerca de 700 argentinos. Jovens que foram mandados por um grupo de generais para um território inóspito lutar por sua pátria. Que é o que geralmente acontece numa guerra. Até hoje a guerra, assim como todo o período da ditadura, é um trauma do povo desse país.
Leopoldo Galtieri, ditador
argentino em 1982.

Margareth Tatcher passando
a revista nas tropas inglesas que foram
às Malvinas (ou Falkland).

A derrota na guerra apressou o fim da ditadura. Em junho de 1982, Galtieri renunciou e no final do ano seguinte ocorreram eleições diretas para presidente.
A disputa entre Inglaterra e Argentina, porém, não terminou em 1982. Por exemplo: na Copa do Mundo de 1986 o jogo entre os dois países foi marcado por essa rivalidade (além de dois do Maradona: um golaço e outro com a mão). Recentemente tivemos ecos da Guerra das Malvinas. Em 2012 completam trinta anos do conflito. Os ingleses descobriram petróleo nas Ilhas Falkland, o nome que dão as Malvinas, nos anos 90. No início do mês de fevereiro, mandaram uma poderosa frota naval, o que para a Argentina significa a militarização britânica do Atlântico Sul. O principal navio de guerra inglês está na região. Até o príncipe William chegou ao arquipélago. Essa situação gerou um certo desconforto diplomático. A Argentina já recorreu à ONU, reclamando dos abusos da Inglaterra. Como se vê, a questão das Malvinas, ou Falkland ainda não está resolvida.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sepé Tiaraju

Ruínas de São Miguel, da qual
Sepé Tiaraju era membro
Hoje, 7 de fevereiro de 2012, completam-se 256 anos da morte de Sepé Tiaraju, guarani da redução São Miguel. Muitos já ouviram falar nesse nome, que inclusive figura no Panteão dos heróis estaduais e nacionais, mas poucos sabem quem realmente ele foi. Ou melhor, poucos sabem o que ele realmente fez. Talvez, por conta da própria mitologia criada em torno dele, talvez devido ao pouco caso que damos aos indígenas no nosso país.
Para entender sua história é preciso voltar no tempo para 1750, quando os monarcas de Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, que se propunha a pôr um fim nas disputas entre as fronteiras dos dois reinos na América. Lembrem que nessa época as regiões que hoje correspondem ao continente americano eram colônias dos países europeus. Dessa maneira, os espanhóis cediam, entre outras possessões, como o Mato Grosso e o Amazonas, o território que correspondia às sete missões orientais, a saber: São Borja, São Miguel, Santo Ângelo, São João, São Lourenço, São Nicolau e São Luís.
Na realidade, estas sete faziam parte de um conjunto de trinta povos guarani-jesuítas. Estes eram uma iniciativa da Igreja junto aos índios, buscando a catequese dos mesmos, ampliando o número de fiéis do cristianismo. Esta iniciativa junto às populações guaranis das regiões que hoje correspondem ao Paraguai, nordeste da Argentina (província de Missiones) e sul do Brasil começou em meados do século XVII e já estava bem consolidada em 1750, sob os domínios do rei espanhol. Logo, os guaranis viviam ali havia muito tempo.
Contudo, de acordo com o Tratado de Madri, esses índios eram obrigados a transmigrar para outra margem do rio Uruguai. Com isso, aconteceu um problema: os reis de Portugal e Espanha “se esqueceram” de perguntar aos guaranis se esses queriam a mudança. Claro, pois num sistema absolutista não se costuma consultar a população antes de tomar alguma resolução. O rei decide e tem a jurisprudência para isso.
Mapa da região.
Os índios deveriam
se mudar de onde hoje é o
Rio Grande do Sul para o
atual território argentino
cruzando o rio Uruguai

Assim que chegaram as ordens de translado, os indígenas tentaram negociar. Solicitaram às autoridades espanholas que este acordo não fosse cumprido, mas claro que não foram ouvidos. Assim, em fevereiro de1753 foram enviadas, pelos ibéricos, comissões demarcadoras para o território missioneiro, para delimitar as novas fronteiras. Qual não terá sido a surpresa quando foram impedidos de passar adiante por um grupo de indígenas em São Miguel. Segundo os relatos, eles eram liderados justamente por Sepé Tiaraju.
Em abril de 1754, novo incidente. As tropas portuguesas se encontravam no forte de Rio Pardo, onde hoje existe a cidade homônima. Um grupo de guaranis se aproximou para espionar. Quando descobertos, foram convidados a entrar no forte. Era uma armadilha, pois as portas se fecharam e os guaranis se viram presos. Os portugueses queriam de volta alguns cavalos que haviam sido roubados. O líder dessa expedição indígena, Sepé Tiaraju, se prontificou para buscá-los. Mesmo escoltado por doze portugueses, conseguiu fugir deles.
Em virtude desse tipo de fato e pela insistência dos guaranis em não abandonar suas terras, as Coroas de Portugal e Espanha decidiram enviar seus exércitos rumo ao território das missões. Os indígenas foram considerados rebeldes. A primeira expedição, organizada em duas colunas separadas, uma de cada monarquia, fracassou. Enviada em setembro de 1754, não resistiu ao mau tempo da região.
Uma segunda expedição, dessa vez com lusos e espanhóis aliados, foi montada e enviada em janeiro de 1756. Assim como a anterior enfrentou diversos obstáculos como escaramuças e ataques rápidos, no estilo guerrilha, montados pelos guaranis. Foi num desses, em 7 de fevereiro que Sepé Tiaraju tombou, morto por um tiro pelo então governador de Montevidéu, José Joaquim de Viana.
Três dias depois, os guaranis conheceriam uma pesada derrota. Cerca de mil e quinhentos indígenas morreram em um dos principais confrontos da resistência e revolta. Apesar de outros pequenos conflitos, os exércitos de Portugal e Espanha entraram no território das missões em maio de 1756.
Mesmo assim, não conseguiram fazer com que todos os guaranis se mudassem para outra margem do rio Uruguai. A “guerra” se mostrou até certo ponto inútil, pois em 1759, o Tratado de Madri foi anulado pelo Tratado de El Pardo. As missões só seriam parte de Portugal quando, em 1801, foi assinado o Tratado de Badajós.
Fique atento ao sul do Brasil e às mudanças entre as fronteiras

Já é mais que hora de darmos o devido lugar aos indígenas na História das Américas. Eles devem ser vistos como agentes e não somente como vítimas, ou como obstáculos à civilização. Estas duas formas de compreendê-los são preconceituosas. É como se os indígenas não tivessem ação, como se sempre ficassem à mercê dos europeus. Parece que eventos como o conflito desencadeado após a assinatura do Tratado de Madri e as ações de Sepé vêm na oposição desse tipo de visão. Este é o índio que aparece e age na História, se movimenta e se adapta aos novos tempos.
Só muito recentemente que a História Indígena virou matéria obrigatória das escolas, o que é um disparate, pois deveria fazer parte do currículo há muito tempo. Os índios também fazem parte da construção da nação brasileira. Recentemente os indígenas vêm realizando importantes conquistas, como, por exemplo, vagas próprias nas universidades. Mas ainda há muito que se fazer, sobretudo nas questões dos direitos à terra. Engraçado que a questão da terra é um problema desde que os europeus chegaram por aqui...